Page 59 - Revista da Armada
P. 59
A MARINHA JOANINA (4)
O contrato de Fernão Gomes
O contrato de Fernão Gomes
ma das razões porque a exploração da costa africana
entrou num certo impasse, a partir de 1460, concerteza
Uque tem a ver com o facto de se perder de vista a © PÁGINA ÍMPAR
Estrela Polar, à medida que se vai avançando para sul.
É verdade que outros astros nocturnos podiam ser obser-
vados – pode medir-se a altura de outras estrelas da Ursa
Menor ou até da Ursa Maior -, mas isso implicava um cálcu- ÁFRICA
lo mais complexo e não consta que essas técnicas fossem
usadas pelos portugueses. Aliás, muito provavelmente, os
pilotos daquele tempo não associavam a altura da estrela (ou
do Polo) à latitude do lugar, porque não tinham a noção
dessa coordenada terrestre. Para entenderem isso, pre-
cisavam de compreender que a terra era redonda, que tinha Mata de Sta Maria
um equador e que a distância a esse equador era medida de
zero a noventa graus, para um e outro lado (norte e sul). Fernando Pó
Ora esta noção não era evidente no século XV, e o que nos Príncipe
sugere Diogo Gomes, na sua Relação (Marinha Henriquina Equador S. Tomé Cabo de Sta Catarina
15), parece ser uma simples regra prática que relacionava um
lugar com uma leitura, sem outros conceitos geográficos ou
matemáticos. Por isso, é de crer que as primeiras viagens,
efectuadas para sul da Serra Leoa, deviam ser feitas com As correntes do Atlântico.
alguma prudência. Era um passo para o desconhecido e,
neste caso, o sentimento de insegurança era agravado por Nela se chegou ao local de resgate de ouro designado depois
alterações significativas no regime de ventos e correntes. por Mina (onde se viria a construir uma fortaleza) e se
Sabe-se, no entanto, que se continuou a viajar para África e descobriram pelo menos as ilhas de S. Tomé (21 de
que foi mantido um comércio regular, cujo lucro pertencia à Dezembro de 1471) e do Príncipe (designada na altura por
coroa ou ao infante D. Fernando (irmão do rei), conforme se Santo António, por ter sido encontrada a 17 de Janeiro de
efectuasse no continente ou nas ilhas de Cabo Verde. 1472), sendo interessante verificar como se conseguem datar
Certamente, foi na sequência de uma destas viagens comerci- muitas destas descobertas, pelo facto de lhe terem sido
ais que Diogo Afonso alcançou as ilhas ocidentais do dados os nomes dos santos que se festejavam no dia em que
Arquipélago, pelo final do ano de 1461 e princípios de 1462: foram efectuadas. Esta viagem, teve ainda um outro mérito
a ilha de S. Nicolau em 6 de Dezembro, Santa Luzia a 13 de importante: permitiu entender o regime de correntes no
Dezembro, Santo Antão a 17 de Janeiro e S. Vicente a 22 interior do golfo da Guiné. Como ainda hoje é notório,
desse mesmo mês. quando a costa inflete para leste, as águas começam também
Entretanto, em 1469, numa altura em que parecia difícil a correr nesse sentido, facilitando a viagem de ida mas
continuar a avançar com os reconhecimentos da costa, um criando grandes problemas para o regresso, numa zona de
contrato comercial efectuado com um rico mercador lisboeta ventos geralmente fracos. No entanto, mesmo no interior do
chamado Fernão Gomes, veio alterar completamente o Golfo, junto à actual República dos Camarões, esta corrente
(aparente) impasse em que se estava desde o princípio da faz uma revessa e passa a correr para oeste, afastada da
década. costa. Por isso, os navios que costeiam aquela região
A julgar pelo que nos deixou escrito João de Barros, o con- africana, quando querem regressar à Europa, têm de se afas-
trato foi assinado em Novembro de 1469, permitindo ao tar de terra, dirigindo-se para sul até encontrar essa revessa
arrendatário a exploração, durante cinco anos, do comércio que lhes facilita a viagem. Pela certa, foi esta operação que
de toda a costa africana. Exceptuavam-se os trautos de levou os portugueses até S. Tomé.
Arguim, que continuariam na mão do rei, e da região em Nos anos que se seguem, Fernando Pó alcançou a região
frente do Arquipélago de Cabo Verde, que era monopólio dos Camarões e a ilha que hoje tem o seu nome, Lopo
dos habitantes da ilha de Santiago. Gonçalves chegou ao Cabo Lopez (na altura Cabo Lopo
Em troca pagaria a quantia anual de 200 000 réis, e seria Gonçalves), e Rui Sequeira ao Cabo de Santa Catarina (certa-
obrigado a mandar “descobrir” 100 léguas de costa por ano, mente a 25 de Novembro de 1474 ou 1475), já a sul do
a partir da mata de Santa Maria, onde se supõe que tinha Equador.
chegado a última viagem de Pero de Sintra. Conforme já aqui se disse, o contrato era de cinco anos, ter-
Não nos é possível conhecer todas as viagens que, por sua minando nos finais de 1474, no entanto, em 1 de Junho de
ordem, foram efectuadas e, tão pouco, sabemos os nomes de 1473, o rei concedia ao mercador lisboeta a possibilidade de
todos os navegadores que estiveram ao seu serviço. No o prolongar por mais um ano, com um ajustamento de renda
entanto, através da pena de cronistas mais tardios, de mais 100 000 réis. Com base neste acordo, foram explo-
chegaram-nos algumas referências que nos parecem muito radas mais de 600 léguas da costa africana e foi ultrapassada
importantes. Muito provavelmente, logo em 1470, Soeiro da a linha equatorial.
Costa faz uma primeira incursão para além do Cabo
Mensurado, mas a viagem que nos surge com mais significa-
do, talvez por ter sido a mais longa e mais profícua, é a de J. Semedo de Matos
João de Santarém e Pero Escobar, efectuada em 1471 e 1472. CTEN FZ
REVISTA DA ARMADA • FEVEREIRO 99 21