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A MARINHA JOANINA (4)



               O contrato de Fernão Gomes
              O contrato de Fernão Gomes



               ma das razões porque a exploração da costa africana
               entrou num certo impasse, a partir de 1460, concerteza
         Uque tem a ver com o facto de se perder de vista a    © PÁGINA ÍMPAR
         Estrela Polar, à medida que se vai avançando para sul.
           É verdade que outros astros nocturnos podiam ser obser-
         vados – pode medir-se a altura de outras estrelas da Ursa
         Menor ou até da Ursa Maior -, mas isso implicava um cálcu-                        ÁFRICA
         lo mais complexo e não consta que essas técnicas fossem
         usadas pelos portugueses. Aliás, muito provavelmente, os
         pilotos daquele tempo não associavam a altura da estrela (ou
         do Polo) à latitude do lugar, porque não tinham a noção
         dessa coordenada terrestre. Para entenderem isso, pre-
         cisavam de compreender que a terra era redonda, que tinha              Mata de Sta Maria
         um equador e que a distância a esse equador era medida de
         zero a noventa graus, para um e outro lado (norte e sul).                            Fernando Pó
           Ora esta noção não era evidente no século XV, e o que nos                            Príncipe
         sugere Diogo Gomes, na sua Relação (Marinha Henriquina  Equador                       S. Tomé  Cabo de Sta Catarina
         15), parece ser uma simples regra prática que relacionava um
         lugar com uma leitura, sem outros conceitos geográficos ou
         matemáticos. Por isso, é de crer que as primeiras viagens,
         efectuadas para sul da Serra Leoa, deviam ser feitas com  As correntes do Atlântico.
         alguma prudência. Era um passo para o desconhecido e,
         neste caso, o sentimento de insegurança era agravado por  Nela se chegou ao local de resgate de ouro designado depois
         alterações significativas no regime de ventos e correntes.  por Mina (onde se viria a construir uma fortaleza) e se
           Sabe-se, no entanto, que se continuou a viajar para África e  descobriram pelo menos as ilhas de S. Tomé (21 de
         que foi mantido um comércio regular, cujo lucro pertencia à  Dezembro de 1471) e do Príncipe (designada na altura por
         coroa ou ao infante D. Fernando (irmão do rei), conforme se  Santo António, por ter sido encontrada a 17 de Janeiro de
         efectuasse no continente ou nas ilhas de Cabo Verde.  1472), sendo interessante verificar como se conseguem datar
         Certamente, foi na sequência de uma destas viagens comerci-  muitas destas descobertas, pelo facto de lhe terem sido
         ais que Diogo Afonso alcançou as ilhas ocidentais do  dados os nomes dos santos que se festejavam no dia em que
         Arquipélago, pelo final do ano de 1461 e princípios de 1462:  foram efectuadas. Esta viagem, teve ainda um outro mérito
         a ilha de S. Nicolau em 6 de Dezembro, Santa Luzia a 13 de  importante: permitiu entender o regime de correntes no
         Dezembro, Santo Antão a 17 de Janeiro e S. Vicente a 22  interior do golfo da Guiné. Como ainda hoje é notório,
         desse mesmo mês.                                     quando a costa inflete para leste, as águas começam também
           Entretanto, em 1469, numa altura em que parecia difícil  a correr nesse sentido, facilitando a viagem de ida mas
         continuar a avançar com os reconhecimentos da costa, um  criando grandes problemas para o regresso, numa zona de
         contrato comercial efectuado com um rico mercador lisboeta  ventos geralmente fracos. No entanto, mesmo no interior do
         chamado Fernão Gomes, veio alterar completamente o   Golfo, junto à actual República dos Camarões, esta corrente
         (aparente) impasse em que se estava desde o princípio da  faz uma revessa e passa a correr para oeste, afastada da
         década.                                              costa. Por isso, os navios que costeiam aquela região
           A julgar pelo que nos deixou escrito João de Barros, o con-  africana, quando querem regressar à Europa, têm de se afas-
         trato foi assinado em Novembro de 1469, permitindo ao  tar de terra, dirigindo-se para sul até encontrar essa revessa
         arrendatário a exploração, durante cinco anos, do comércio  que lhes facilita a viagem. Pela certa, foi esta operação que
         de toda a costa africana. Exceptuavam-se os trautos de  levou os portugueses até S. Tomé.
         Arguim, que continuariam na mão do rei, e da região em  Nos anos que se seguem, Fernando Pó alcançou a região
         frente do Arquipélago de Cabo Verde, que era monopólio  dos Camarões e a ilha que hoje tem o seu nome, Lopo
         dos habitantes da ilha de Santiago.                  Gonçalves chegou ao Cabo Lopez (na altura Cabo Lopo
           Em troca pagaria a quantia anual de 200 000 réis, e seria  Gonçalves), e Rui Sequeira ao Cabo de Santa Catarina (certa-
         obrigado a mandar “descobrir” 100 léguas de costa por ano,  mente a 25 de Novembro de 1474 ou 1475), já a sul do
         a partir da mata de Santa Maria, onde se supõe que tinha  Equador.
         chegado a última viagem de Pero de Sintra.             Conforme já aqui se disse, o contrato era de cinco anos, ter-
           Não nos é possível conhecer todas as viagens que, por sua  minando nos finais de 1474, no entanto, em 1 de Junho de
         ordem, foram efectuadas e, tão pouco, sabemos os nomes de  1473, o rei concedia ao mercador lisboeta a possibilidade de
         todos os navegadores que estiveram ao seu serviço. No  o prolongar por mais um ano, com um ajustamento de renda
         entanto, através da pena de cronistas mais tardios,  de mais 100 000 réis. Com base neste acordo, foram explo-
         chegaram-nos algumas referências que nos parecem muito  radas mais de 600 léguas da costa africana e foi ultrapassada
         importantes. Muito provavelmente, logo em 1470, Soeiro da  a linha equatorial.
         Costa faz uma primeira incursão para além do Cabo
         Mensurado, mas a viagem que nos surge com mais significa-
         do, talvez por ter sido a mais longa e mais profícua, é a de                             J. Semedo de Matos
         João de Santarém e Pero Escobar, efectuada em 1471 e 1472.                                       CTEN FZ
                                                                                      REVISTA DA ARMADA • FEVEREIRO 99  21
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