Page 56 - Revista da Armada
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A feliz tradição vem dos fundos dos tempos nacionais, facto sobe-
jamente notado por dois ilustres olisipógrafos ao ponderarem que:
A ideologia heráldica de Lisboa teve desde sempre por motivo funda-
mental um navio – barca ou varinel, de linha meramente esquemática –
com dois corvos colocados um na proa e outro na popa, e voltados
para o interior da embarcação.
Muito remotamente o navio, qualquer que houvesse sido a sua linha,
era insígnia dos portos marítimos, variando no que dizia respeito ao
aparelho e aos acessórios.
Os corvos na figura heráldica olisiponense remontam, sem dúvida,
ao tempo de D. Afonso Henriques, no começo do último quartel do
Sigla do Mestre de caravelas, João de Lião, aposta num documento de 1488. século XII, embora dessa época não nos tenha ficado documento de
A mais antiga representação de caravela. qualquer espécie. Aquele significativo acessório não deve filiar-se nos
brasões dos portos marítimos, dos quais nos ficou apenas a ideologia do
palacete onde morou e que ele até lhe oferecera 500$00 pelo corvo e
que o mandava tirar e arranjar toda a fachada por sua conta. navio de simples traça, e muito menos se filiará nas galeras biremes
romanas, onde figuraria já um corbus (máquina guerreira). (4)
Ao tempo da Fundação da Nacionalidade Portuguesa e ainda por
muito tempo não havia ban-
deiras nacionais propriamente Nas ruínas da igreja velha de S. Nicolau foi encontrado um padrão
ditas que representassem o esta- dos barqueiros de Olísipo aos deuses marinhos cuja tradução:
do político, as nações ainda em
formação. As forças guerreiras Memória consagrada aos deuses do Mar.
eram conduzidas sob a bandeira Os marinheiros e barqueiros
Do Oceano
de cada chefe, que no essencial Ofereceram éste don ao templo de
respeitavam a cor, as insígnias e Tethis, para que lhes livre
os atributos heráldicos das Suas embarcações de tempestades.
ordens militares usados nos escu- Dedicaram-lho por voto que tinham feito. (5).
dos a que cada qual juntava um
ou outro cunho pessoal, quanto Mostra que já nos tempos pagãos havia, em Lisboa, um templo
era vulgar os artistas identifi- dedicado a Tétis, deusa do mar.
carem-se nos próprios trabalhos As naus de pedra foram notadas por renomados arqueólogos e
através de marcas ou siglas. escritores olisiponenses quando em suas peregrinações as vão encon-
Os Egípcios deixaram relevos trando sem deter-se para dispensar-lhe algo mais que um parágrafo:
de barcos esculpidos nas paredes “A Cidade tem ainda hoje muitas pedras com as naus de S.
de seus sarcófagos, os Fenícios Vicente, por essas ruas, a atestar velhos ou mais novos domínios, ou
gravaram navios na pedra, e os significando quantas vezes, da parte dos particulares, um sinal de
Viquingues os entalharam nas rochas. Tocados por estes povos maríti- rogação protectora ao Santo da Cidade”. (6).
mos e desde sempre escravos do mar, os Portugueses cedo se Quanto foram consideradas pertença da gente do mar por reputa-
tornaram gente navegante aventureira e audaciosa, capaz de afrontar dos historiadores:
os Descobrimentos e de vasculhar os mares tenebrosos, a poder de “Em Lisboa, hóspede do irmão, vivendo na loja do cartógrafo, no
remo e vela, em todos os rumos dos ventos. bairro da gente do mar – cujos restos ainda hoje ostentam nos
Vencedores à custa de sacrifícios e vidas sem conto, não podiam umbrais das portas, como um estigma de glória, as suas caravelas
os nossos navegadores deixar de observar a tradição iconográfica esculpidas no lioz – Colombo vê entrar e sair no estuário as naves
do barco como marca de vida que se colou à própria imaginação aventurosas que vão e voltam das paragens remotas da África e dos
por atávica paixão marinheira que arquipélagos atlânticos”. (7).
continua a manifestar-se nas pin- Outros autores anotam que as naus de pedra saem de Lisboa com
turas de barcos nas muralhas dos os velhos marinheiros para continuarem a fazer-lhes companhia,
portos, no azulejo, nos ex-votos, levando consigo para a Ericeira:
ex-libris, etc.
Com a epopeia dos Desco- (...) Um grande barco de madeira, uma arca poída dos anos, uma
brimentos e consequente expansão meia cómoda e ao fundo a cozinha esfumaçada. Por cima o sobrado,
lusíada, o navio quinhentista passou com o quarto de dormir, onde, mesmo da cama, se vê o mar, como
também a alegorizar a Alma pela vigia dum barco. Nas paredes imagens e navios em relevo – a
Portuguesa e daí a valiosa em- barca, o iate, a escuna, o lugre em que navegaram... (8).
blemária que com rara felicidade
espalha e enobrece a feliz tradição Ao descrever o Zuiderzê em “A Holanda”, Ramalho Ortigão obser-
marinheira, completando-a com va: “Na padieira de um antigo prédio, datado, em grandes algarismos,
figura da nau nos emblemas de empresas, clubes, estabelecimentos, de 1610, depara-se-me um baixo-relevo representando uma caravela,
sociedades culturais e demais actividades ligadas ao mar ou a mari- e por baixo este letreiro: In de Lisbons warder (No barco que vai para
nheiros. Lisboa)”.
A tradição do navio como sinal marinheiro já foi observada pelo Estroutros ainda as vêem tão generalizadas que as consideram
Rei da Boa Memória que, talvez para obstar à sua generalização, marca nacional:
determinou em 1400:
“ (...) como Portugal a terra do fado e das caravelas prenhes de vento,
« Dom Joham etc. fazemos saber que nossa mercee he que os nossos em que a cruz de Cristo arreganha os lábios vermelhos, num sorriso
alcaides das gallees moradores em a nossa cidade de lixboa por saber muito cavalheiresco, de muita religião, muito nacional...” (9).
onde moram e serem conhecidos por alcaides e lhe serem guardados
seus privjllegios... que cada huu delles tenha aa sua porta senhas feguras
de gallees...» (3) As figuras de barcos gravadas nos selos pendentes de quatro docu-
mentos de três entidades diferentes, respectivamente do Cabido da Sé
18 FEVEREIRO 99 • REVISTA DA ARMADA