Page 55 - Revista da Armada
P. 55
As Naus de Pedra
As Naus de Pedra
Q uando colaborava na Revista Turismo, o escritor – artista Jerónimos, o relevo de
um navio aponta a
Jaime Duarte de Almeida apontou-me as “naus de pedra dos
mareantes” como tema do maior interesse, que ele lera num eterna morada de ho-
artigo onde o autor referia que determinados traços dos relevos mens cujas vidas foram
denunciavam o posto naval e outros distintivos de seus autores. temperadas pelos sal-
Jamais consegui localizar o autor do referido trabalho. Todavia, gados amargores dos
depara-se-me um arcaico barco de pedra sobre a padieira da porta mares.
dum velho muro duma desaparecida azinhaga em Almada, que me A casa de Pero Ga-
assegurou que as naus de pedra tinham outra motivação que não as lego na Viela da Pa-
das armas lisbonenses, e logo no artigo “Quando Lisboa nos Fala do renta, em Viana do
Infante” do nº de Janeiro - Março de 1960 da citada Revista, chama- Castelo, remonta aos
va-se a atenção para essas maravilhosas relíquias. Daí por diante, ten- princípios da segunda
támos todas as oportunidades para estudar e lembrar as preciosas metade de quinhentos. Tumulo de Vasco da Gama, na Igreja dos Jerónimos.
lápides com os barcos dos homens do mar. Desolador pregar no Gravada no duro granito duma ombreira, a caravela memoriza e per-
deserto, enquanto o camartelo faz desaparecer uma boa parte. petua os feitos navais de um grande marinheiro que na sua juventude
O senhor Coronel Nuno Valdez dos Santos apresentou uma comu- foi numa armada a África e comandou durante três anos um navio
nicação à Academida de Marinha em 10 de Dezembro de 1986, su- que destemidamente fez guerra sem tréguas aos piratas que infes-
bordinada ao tema Pedras que Falam do Mar, que ilustrou com 96 tavam os mares das costas do Continente e das Ilhas.
gravuras, tendo colocado então perguntas pertinentes, sem chegar a
conclusão plausível, nem mesmo depois de interrogar mais de uma
dezena dos nossos melhores estudiosos e muitas outras figuras de
prestígio da nossa vida cultural que não lhe deram resposta que se lhe
afigurasse digna de aplauso.
Torna-se irrefutável a existência de um facto histórico quando o seu
agente existe bem definido no espaço e no tempo e é conhecido e
provado através de narrações escritas e orais, respondendo por sua
própria natureza às dúvidas suscitadas.
A Sé do Porto, iniciada no episcopado do bispo francês D. Hugo,
ainda na vigência do Condado Portucalense, mostra numa pedra de Casa de Pero Galego, Viana do Castelo.
portaria a ingénua inscultura de um barco, suscitando sérias interro- A lápide com barco da Rua das Fontaínhas a S. Lourenço, 34,
gações: deve remontar ao séc. XV. Arcaicas e belíssimas são várias destas
relíquias e, dentre estas, aquela quase delida que na Rua do
Benformoso, 210, mostra um galo empoleirado no cesto da gávea
como que a perpetuar a basófia
do marinheiro que em terra
canta de poleiro. Uma das naus
da Calçada de S. Vicente, 106,
mal afeiçoados alguns con-
tornos da pedra bruta para dar-
-lhe figura de barco, parece
arrancada, desarvorada e perdi-
Barca esculpida numa pedra da frontaria da Sé do Porto e que é, certamente, das mais da na tormenta, duma página
antigas representações iconográficas dum navio português (fins do século doze lutuosa da nossa História
ou princípios do imediato).
Trágico-Marítima.
“ ... memória, rasto de chegada de cruzados? sigla profissional? O belo prédio do Largo São
esquecido ex-votos? mera representação estereotipada? sinal de con- João Nepomuceno, 14, foi cons- Rua das Fontainhas a S. Lourenço, Nº 34.
tribuição para obra? truído por Cipriano Bízio que, em 1800, aforou o terreno aos padres
Qual a mensagem que lhe caberia transmitir – ou, mais modesta- do hospício, começando as obras de seguida. (2). Os velhinhos do
mente, para comunicar o quê? e a quem? lar ali localizado não tinham a menor lembrança de ouvir falar do
São tudo questões de difícil ou mesmo impossível resposta”.(1) construtor do prédio, mas não tinham dúvidas de que os barcos de
Da mesma época, a românica igreja de Rio Mau, na área de Vila do pedra eram dos marinheiros.
Conde, mostra no relevo dos seus capitéis duas barcas: uma com um As duas caravelas da Travessa de S. João da Praça foram colocadas
barqueiro e a outra com três passageiros. Estas singelas esculturas, por Diogo da Silva, homem
alheias e desnecessárias à harmonia do conjunto, terão sido gravadas das armadas de África e 1º
à revelia por anónimos apaixonados do mar para tornar-se as mais embaixador de D. João III ao
antigas representações iconográficas de barcos, os primeiros escul- Concílio de Trento, na casa
pidos marinheiros que conhecemos. que ali construiu por mea-
As muralhas de Santarém teriam sofrido obras de recuperação e dos de quinhentos.
conservação em várias épocas. Num desses trabalhos, que pode O velho merceeiro daque-
remontar ao século XVI, alguém grafitou no reboco fresco a figura de la vetusta casa do corvo da
um barco que, felizmente, se conserva no jardim do nº 36-A da Rua das Farinhas diz-me que
Avenida 5 de Outubro. Do século passado ou princípios deste serão foi o poeta Afonso Lopes
as gravuras de barcos de Foz Coa. Também, e à feição do que ocorre Vieira quem mandou colocar
nas jazidas de S. Francisco Xavier, em Goa, e de Vasco da Gama, nos Largo de S. João Nepomuceno, 14. aquela galé de pedra no ✎
REVISTA DA ARMADA • FEVEREIRO 99 17