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O Índico Português:
                           O Índico Português:



            o amanhecer de um Império
            o amanhecer de um Império





         MOUROS, CRISTÃOS
         E ESPECIARIAS

           A 24 de Janeiro de 1498, Vasco da Gama navegava em pleno
         Oceano Índico e chegava à vista do que chamou de Rio dos
         Bons Sinais (Quelimane), onde se deteve trinta e dois dias, con-
         forme nos diz o Relato Anónimo da viagem, atribuído a Álvaro
         Velho. Que bons sinais seriam estes?... Eram os primeiros
         vestígios de algo já conhecido dos portugueses, traduzidos na
         maneira de vestir de alguns dos nativos e no facto de um deles
         dizer que já tinha visto navios daquele porte. Ao cabo de mais
         de seis meses de viagem, quando o escorbuto já atacava alguns
         dos marinheiros, apareciam sinais do que se procurava. A par-
         tir daí, o Relato é a viva expressão da ansiedade na procura de
         um piloto local, a que se junta a crescente desconfiança dos que
         vêem chegar os navios portugueses e percebem o perigo que
         isso pode significar para a actividade comercial que, desde há
         muito, mantêm por aquelas paragens. Depois de alguns inci-
         dentes, conseguiram-no em Moçambique, mas daí até Pemba,
         Mombaça e Melinde, a viagem foi suficientemente atribulada
         (a S. Rafael chegou a encalhar) para perceberem que a costa era
         bastante perigosa para quem a desconhecia em absoluto. Foi o
         primeiro encontro directo, nos mares do Índico, entre a civi-
         lização europeia ocidental cristã, e o certo mundo oriental,
         neste caso muçulmano, com influência desde a África Oriental
         (desde Sofala), até à Arábia, à Índia e, mesmo, mais para ori-
         ente, até à Península Malaia e à Indonésia. Era nesse mundo
         que os portugueses iam entrar, e é curiosa a forma como se ale-
         gram ao encontrar vestígios dele nos “bons sinais” de
         Quelimane, parecendo-me que já tinham algum conhecimento
         de quem dominava (ou de quem tinha grande influência) esse
         espaço que era o Oceano Índico – por um lado pluricultural e,
         por outro, equilibrado e harmonioso na forma como os seus
         povos se interligam.                                 O Rei D. Manuel com a Rainha D. Leonor (Igreja da Misericórdia - Lisboa).
           Diz-nos Orlando Ribeiro, num pequeno estudo intitulado
         Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, que “Em nenhum outro  cas do oceano. Navegar no Índico exige um conhecimento das
         espaço do Globo as relações da geografia e da história formam,  circunstâncias meteorológicas e de técnicas de navegação,
         como no Mediterrâneo, uma trama espessa e indissolúvel”.  muito mais apuradas do que aquelas que os portugueses her-
         Sem dúvida que é verdade e prova-o o magnífico estudo das  daram do Mediterrâneo, e a verdade é que  essas técnicas se
         condições geográficas que geraram as forças vivas criadoras de  desenvolveram a partir dos século X ou XI, muito antes de
         civilizações notáveis. Mas não é menos verdade que no espaço  qualquer aventura coerente no Atlântico. Diz-nos Ahmad ibn
         do Índico, também, se caldearam formas de vida e de reco-  Magid – notável piloto árabe do século XV autor de numerosos
         nhecida importância. Se nos cingirmos aos séculos precedentes  estudos náuticos e roteiros – que tudo começou com o advento
         à chegada de Vasco da Gama                                                     dos Abássidas (dinastia de
         à Índia, poderemos dizer que                                                   califas que assumiu o poder
         o Mundo Índico pré-gâmico,  Calecut era o porto mais importante de todo        em 750 d.C.), fundadores da
         em nada ficava atrás do seu  o Malabar, mas o Samorim não estava dispos-       cidade de Bagdad, colocada
         correspondente ocidental   to a negociar com portugueses, de forma que         entre os rios Tigre e Eufrates,
         cristão. A prova disso encon-  foi necessário desviar as atenções para outros  com um acesso privilegiado
         tramo-la nos próprios relatos  lugares, como Cochim e Cananor.                 ao Golfo Pérsico. Na verdade,
         dos portugueses de quinhen-                                                    o poder califal, já antes atra-
         tos, revelando as riquezas, os                                                 vessara a Pérsia, uma parte
         modos de vida e até a estrutura política dos poderes instituídos  do Afeganistão e penetrara no Sind (uma província paquis-
         à volta daquele oceano. E atendendo às fontes locais anteriores  tanesa), mas a islamização das populações até ao Extremo-
         à chegada dos portugueses, verificamos que durante séculos se  Oriente, só se daria com o desenvolvimento do comércio marí-
         foi estruturando um fervilhar de actividade comercial, assente  timo, onde, efectivamente, os árabes desempenharam um
         no tráfico marítimo, a que não foi estranha a expansão árabe  papel fundamental.
         (violenta ou pacífica, conforme as circunstâncias) que estendeu  O Oceano Índico não pode ser sulcado por navios à vela em
         a sua influência até à Indonésia, aproveitando as condições físi-  qualquer altura do ano, sendo necessário jogar com o fenó-

         6 DEZEMBRO 2001 • REVISTA DA ARMADA
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