Page 369 - Revista da Armada
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meno meteorológico das
         monções. A abordagem dos
         portos do Malabar (por
         exemplo) só podia fazer-se
         num período curto (monção
         pequena), por meados de
         Maio, ou numa altura mais
         alargada (monção grande),
         em Agosto e Setembro. Fora
         destas épocas ou os ventos
         eram contrários e difíceis de
         vencer (como acontece de-
         pois de Outubro) ou vinham
         temporais terríveis que colo-
         cavam em perigo todos os
         navios que estivessem na
         Índia. Isto foi verificado
         pelos árabes muito antes da
         chegada de Vasco da Gama,
         da mesma forma que foram
         acumulando um manancial
         de conhecimentos que lhes
         permitia navegar com o
         auxílio das estrelas, com base
         em dados registados em
         roteiros próprios, alguns dos
         quais chegaram aos nossos  A Índia - representação do atlas de M. Teixeira Albernaz (1643).
         dias. Da costa oriental afri-
         cana até ao Japão, tudo estava marcado em rotas precisas  tante de todo o Malabar, mas o rei local (o Samorim) não esta-
         definidas por alturas estelares, com avisos de perigos, conhe-  va disposto a negociar com portugueses, de forma que foi
         cenças, períodos favoráveis (as tais monções, na designação  necessário desviar as atenções para outros portos, como
         árabe), formas de carregar os navios, normas de conduta a  Cochim e Cananor, jogando com as rivalidades locais para con-
         bordo, tempo aproximado das travessias, etc.. Foi, pois, com  seguir carregar os navios. Era apenas o primeiro passo para o
         base neste saber - árabe na sua origem - que se desenvolveu o  estabelecimento do poder português no Oriente.
         rodopio comercial que troca panos de Cambaia por ouro,
         marfim e escravos em Sofala; cavalos da Arábia e Pérsia por  O IMPÉRIO MARÍTIMO
         pimenta do Malabar, canela de Ceilão ou cravo da longínqua
         Insulíndia.                                           Seguramente que os portugueses não contaram que o comér-
           Quando Vasco da Gama chegou a Calecut, em 1498, desem-  cio do Índico estivesse tão dominado pelos mercadores muçul-
         barcou um degredado que se encontrou com “dois mouros de  manos, mas a antinomia que opôs as duas religiões pode não
         Tunes que sabiam falar castelhano”. A surpresa deve ter sido  ser tão real quanto aparenta o discurso coevo. É sabido como
         grande e a pergunta surgiu imediatamente: que vêm aqui  os mouros influenciaram o Samorim de Calecut, como estive-
         fazer? Ao que o português                                                      ram na base da conspiração
         respondeu: “Vimos buscar    D. Manuel achou que seria necessário nomear        de Moçambique e Mombaça
         cristãos e especiarias”. Esta  um representante seu para ficar na Índia, e     contra os marinheiros do
         expressão tem suscitado os  gerir, em seu nome, todos os negócios. O           Gama, mas havia muitos mais
         mais vivos debates sobre o                                                     mouros no Índico que aca-
         verdadeiro carácter das gen-  primeiro indigitado seria Tristão da Cunha,      baram por se ligar ao comér-
         tes portuguesas que de-     que adoeceu antes de partir e foi substituído      cio português e tornar-se alia-
         mandaram a Índia pela rota  por D. Francisco de Almeida.                       dos do poder lusíada contra
         do Cabo da Boa Esperança.                                                      outros rivais. O que é, eviden-
         Naturalmente que procura-                                                      temente, real é que a presença
         riam cristãos, numa altura em que a identificação religiosa  dos nossos compatriotas e a sucessão de esquadras enviadas de
         facilitava os tratos pacíficos, correspondendo aos mais amplos  Lisboa afectou o tráfico de especiarias que pela Arábia
         sonhos imperiais de D. Manuel. Mas não é claro que o tenham  chegavam ao Mediterrâneo. E de tal forma isso foi significativo
         feito com a mesma persistência com que quiseram saber das  que em Abril de 1504 o sultão mameluco (Egipto) lançou uma
         especiarias. Não sabemos sequer até que ponto os hindus do  ameaça de que destruiria o Santo Sepulcro, caso a presença
         Malabar não foram vistos como cristãos do oriente, tal é a  portuguesa não cessasse imediatamente. O aviso chegou à
         forma vaga e equívoca como surgem representados nos docu-  Europa através de Veneza (como não podia deixar de ser) e foi
         mentos. É absurdo que esta ânsia de encontrar cristãos não  comunicada ao Papa por um frade franciscano, prior da Casa
         tenha uma expressão dominante nas relações com as gentes  de Santa Catarina do Monte Sinai. D. Manuel recebeu um breve
         que descobrem. Que tenha deixado a dúvida sobre se seriam os  de Júlio II, mas não lhe deu importância nenhuma, certamente
         naturais de Calecut descendentes dos cristãos que veneravam  porque pressentiu que aí havia mais a mão de Veneza do que
         o túmulo de S. Tomé. Mas quanto às especiarias sabemos que  propriamente a do Sultão. Chegou a dizer que nunca o sobera-
         carregaram os navios com elas e que, apesar de todos os aci-  no mameluco destruiria o que tantos rendimentos lhe trazia,
         dentes ocorridos com as primeiras esquadras (a de Pedro  através das taxas que cobrava aos peregrinos cristãos. E ale-
         Álvares Cabral perdeu cerca de metade dos navios), o negócio  grou-se até com o facto de que os seus navios causassem tanto
         foi altamente lucrativo, superando largamente o valor dos  prejuízo ao mundo muçulmano, ao ponto de lhe enviarem
         investimentos. Calecut era, efectivamente o porto mais impor-  ameaças desse tipo.
                                                                                      REVISTA DA ARMADA • DEZEMBRO 2001 7
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