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meno meteorológico das
monções. A abordagem dos
portos do Malabar (por
exemplo) só podia fazer-se
num período curto (monção
pequena), por meados de
Maio, ou numa altura mais
alargada (monção grande),
em Agosto e Setembro. Fora
destas épocas ou os ventos
eram contrários e difíceis de
vencer (como acontece de-
pois de Outubro) ou vinham
temporais terríveis que colo-
cavam em perigo todos os
navios que estivessem na
Índia. Isto foi verificado
pelos árabes muito antes da
chegada de Vasco da Gama,
da mesma forma que foram
acumulando um manancial
de conhecimentos que lhes
permitia navegar com o
auxílio das estrelas, com base
em dados registados em
roteiros próprios, alguns dos
quais chegaram aos nossos A Índia - representação do atlas de M. Teixeira Albernaz (1643).
dias. Da costa oriental afri-
cana até ao Japão, tudo estava marcado em rotas precisas tante de todo o Malabar, mas o rei local (o Samorim) não esta-
definidas por alturas estelares, com avisos de perigos, conhe- va disposto a negociar com portugueses, de forma que foi
cenças, períodos favoráveis (as tais monções, na designação necessário desviar as atenções para outros portos, como
árabe), formas de carregar os navios, normas de conduta a Cochim e Cananor, jogando com as rivalidades locais para con-
bordo, tempo aproximado das travessias, etc.. Foi, pois, com seguir carregar os navios. Era apenas o primeiro passo para o
base neste saber - árabe na sua origem - que se desenvolveu o estabelecimento do poder português no Oriente.
rodopio comercial que troca panos de Cambaia por ouro,
marfim e escravos em Sofala; cavalos da Arábia e Pérsia por O IMPÉRIO MARÍTIMO
pimenta do Malabar, canela de Ceilão ou cravo da longínqua
Insulíndia. Seguramente que os portugueses não contaram que o comér-
Quando Vasco da Gama chegou a Calecut, em 1498, desem- cio do Índico estivesse tão dominado pelos mercadores muçul-
barcou um degredado que se encontrou com “dois mouros de manos, mas a antinomia que opôs as duas religiões pode não
Tunes que sabiam falar castelhano”. A surpresa deve ter sido ser tão real quanto aparenta o discurso coevo. É sabido como
grande e a pergunta surgiu imediatamente: que vêm aqui os mouros influenciaram o Samorim de Calecut, como estive-
fazer? Ao que o português ram na base da conspiração
respondeu: “Vimos buscar D. Manuel achou que seria necessário nomear de Moçambique e Mombaça
cristãos e especiarias”. Esta um representante seu para ficar na Índia, e contra os marinheiros do
expressão tem suscitado os gerir, em seu nome, todos os negócios. O Gama, mas havia muitos mais
mais vivos debates sobre o mouros no Índico que aca-
verdadeiro carácter das gen- primeiro indigitado seria Tristão da Cunha, baram por se ligar ao comér-
tes portuguesas que de- que adoeceu antes de partir e foi substituído cio português e tornar-se alia-
mandaram a Índia pela rota por D. Francisco de Almeida. dos do poder lusíada contra
do Cabo da Boa Esperança. outros rivais. O que é, eviden-
Naturalmente que procura- temente, real é que a presença
riam cristãos, numa altura em que a identificação religiosa dos nossos compatriotas e a sucessão de esquadras enviadas de
facilitava os tratos pacíficos, correspondendo aos mais amplos Lisboa afectou o tráfico de especiarias que pela Arábia
sonhos imperiais de D. Manuel. Mas não é claro que o tenham chegavam ao Mediterrâneo. E de tal forma isso foi significativo
feito com a mesma persistência com que quiseram saber das que em Abril de 1504 o sultão mameluco (Egipto) lançou uma
especiarias. Não sabemos sequer até que ponto os hindus do ameaça de que destruiria o Santo Sepulcro, caso a presença
Malabar não foram vistos como cristãos do oriente, tal é a portuguesa não cessasse imediatamente. O aviso chegou à
forma vaga e equívoca como surgem representados nos docu- Europa através de Veneza (como não podia deixar de ser) e foi
mentos. É absurdo que esta ânsia de encontrar cristãos não comunicada ao Papa por um frade franciscano, prior da Casa
tenha uma expressão dominante nas relações com as gentes de Santa Catarina do Monte Sinai. D. Manuel recebeu um breve
que descobrem. Que tenha deixado a dúvida sobre se seriam os de Júlio II, mas não lhe deu importância nenhuma, certamente
naturais de Calecut descendentes dos cristãos que veneravam porque pressentiu que aí havia mais a mão de Veneza do que
o túmulo de S. Tomé. Mas quanto às especiarias sabemos que propriamente a do Sultão. Chegou a dizer que nunca o sobera-
carregaram os navios com elas e que, apesar de todos os aci- no mameluco destruiria o que tantos rendimentos lhe trazia,
dentes ocorridos com as primeiras esquadras (a de Pedro através das taxas que cobrava aos peregrinos cristãos. E ale-
Álvares Cabral perdeu cerca de metade dos navios), o negócio grou-se até com o facto de que os seus navios causassem tanto
foi altamente lucrativo, superando largamente o valor dos prejuízo ao mundo muçulmano, ao ponto de lhe enviarem
investimentos. Calecut era, efectivamente o porto mais impor- ameaças desse tipo.
REVISTA DA ARMADA • DEZEMBRO 2001 7