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Nemésio e o Mar
                             Nemésio e o Mar





               itorino Nemésio, meu Pai, açoriano dos quatro costa-  No “Corsário das Ilhas”, Nemésio afirma-se, metaforica-
               dos, nascido de sua Ilha Mãe, a Ilha Terceira, feito  mente “tartaruga que puxa sempre para o mar”..
         V sobretudo de terra e mar, “porventura mais de mar do  “Feio e teimoso bicho! (diz Nemésio). Mas bicho firme, de
         que de terra”, como ele próprio se afirmava; criador do termo  um só rosto e de uma só fé — a fé refeita e salgada do fundo
         “açorianidade”, a exemplo da “hispanidade” de Unamuno; é  do Oceano Atlântico.” (3). Mais adiante, a bordo do Santa
                                                              Maria, o Corsário confessa-se, como que num ritual muito
                                                              puro de oração matinal: «Sou ilhéu; e, tanto ou mais do que a
                                                              ilha, o ilhéu define-se por um rodeio de mar por todos os
                                                              lados. Vivemos de peixe, da hora da maré e a ver navios... Na
                                                              infância e na adolescência era o meu mais belo espectáculo.
                                                              Quase todas as casas abastadas, nos Açores, estavam munidas
                                                              de um velho óculo de alcance, e algumas de binóculos, com
                                                              que se seguiam as chaminés dos paquetes e as árvores dos
                                                              veleiros molhadas na linha do horizonte. Na nossa casinha de
                                                              campo, na Vinha do Mão Roxa, sobre os vinhedos e lavas
                                                              lambidas ao longe pela ressaca, meu pai, — músico e um
                                                              pouco poeta, — trepava à varanda do telhado, sacava do
                                                              grande búzio, ao pôr do sol, e metendo e tirando a mão direi-
                                                              ta na rosca corada do calcário, tirava-lhe dois aulidos alternos
                                                              e melancólicos, intencionalmente repetidos, sinal de vida iso-
                                                              lada dado à vizinhança do longe. (4)
                                                               A seu filho Manuel, cedeu-lhe, o Poeta, a fardinha-maravilha
                                                              do marinheiro que não foi, pela modéstia de não ter sido en-
                                                              cartado, — (mas foi-o, lhe asseguro, meu Pai): — (marinheiro
                                                              genuíno honoris causa... pescador... valente homem do mar):


                                                                      O teu filho é um peixe de metal:
                                                                      Vai ao fundo das águas recolher
                                                                      O lugre ardido, os sinos, o coral,
                                                                      Ou a morte em flores de fogo, se morrer. (5)


                                                               Uma vez por outra, Nemésio, exibia-se com o bonézinho
         lava de ilhéu feito ilha, é navio, arquipélago, continente, mundo  do filho: aprumava-se e fazia-lhe a continência, sorrindo
         cósmico saído do ovo, qual navio à deriva, perdido e achado na  embevecido: — “Dá licença, senhor comandante?” — Certo
         meia distância atlântica no mito do avante devagar, sem  que sim, meu querido Pai.
         retorno, com garantia de piloto na rota helicoidal do Poeta:  Nemésio nega-se e afirma-se: « Não sou marinheiro (por
                                                              incontável modéstia, insisto eu), mas sou ilhéu e portanto
                Ah, ovo que deixei, bicado e quente,          embarcadiço. Além de que a vida é em si mesma uma ver-
                Vazio de mim, no mar,                         dadeira derrota, uma vasta e tremenda singradura. » (6)
                E que ainda hoje deve boiar, ardente           Para meu Pai: « os navios são femininos, capciosos e
                Ilha!                                         ligeiros. Talham a linfa e o vento: umas vezes embalam como
                E que ainda hoje deve lá estar!  (1)
                                                              berços, outras abraçam-nos de amor. E, pouco a pouco, têm-
                                                              -nos na sua mão estrangeira e inconstante. Mas nenhum caver-
           Em Nemésio, a sua ligação ao mar mede-se profunda (mais de  name deste Mundo me pareceu valer o barquinho em que
         mar do que de terra). Seu Pai, Victorino Gomes da Silva, músico  Manuel do Luís e o Bicho iam de madrugada à cavala, para
         amador de fina sensibilidade artística, foi seu búzio de mar, feito  voltarem à tarde a dormir no sossego e na paz dos seus case-
         patrão de costa no cantante de sua ilha:
                                                              bres. » (7)
                  Meu Pai! meu Pai! minha luz!                 Meu Pai, feito Corsário, hesita, balançando-se: « “Vou! Não
                  Meu génio! (nanja ruim!)                    vou?” Umas vezes: “Vou!” Outras: “Não!” Maldita condição
                  Ó meu sangue alvoraçado                     pendular da vontade! Perpétua indeterminação do disponível
                  Dos espantos de onde vim!                   e do gratuito...
                  ..........................................   Mas já vou mesmo!... Despedi-me. Embarquei. Parti. Fiz,
                  Meu Pai andava queixoso,                    enfim, um par de pretéritos perfeitos e próprios das viagens...
                  Fechou-se comigo e deu                      Já o meu próprio escrever é fluido como o mar e, como ele,
                  Uma pancada na música                       ilógico. Uma cinza húmida e fresca tornou-se comum às
                  Que nunca me esqueceu!                      águas, ao céu, à alma, à cabeça. Só o coração vigia inteiro e
                                                              saudável nas primeiras derrotas do mar. (Eu durmo e o meu
                  Os motetes que meu Pai                      coração vigia.) Navegamos ambos, o coração e eu... » (8)  — e
                  Me ensinou quando fugiu                     mais adiante o Poeta acrescenta:
                  Estão cantados no meu sangue                 « O navio, aliás, navega pelos seus próprios meios, sem
                  Como a água está no rio. (2)                reboque mecânico ou animal, e é com o seu verdadeiro
         8 JANEIRO 2002 • REVISTA DA ARMADA
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