Page 10 - Revista da Armada
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Nemésio e o Mar
Nemésio e o Mar
itorino Nemésio, meu Pai, açoriano dos quatro costa- No “Corsário das Ilhas”, Nemésio afirma-se, metaforica-
dos, nascido de sua Ilha Mãe, a Ilha Terceira, feito mente “tartaruga que puxa sempre para o mar”..
V sobretudo de terra e mar, “porventura mais de mar do “Feio e teimoso bicho! (diz Nemésio). Mas bicho firme, de
que de terra”, como ele próprio se afirmava; criador do termo um só rosto e de uma só fé — a fé refeita e salgada do fundo
“açorianidade”, a exemplo da “hispanidade” de Unamuno; é do Oceano Atlântico.” (3). Mais adiante, a bordo do Santa
Maria, o Corsário confessa-se, como que num ritual muito
puro de oração matinal: «Sou ilhéu; e, tanto ou mais do que a
ilha, o ilhéu define-se por um rodeio de mar por todos os
lados. Vivemos de peixe, da hora da maré e a ver navios... Na
infância e na adolescência era o meu mais belo espectáculo.
Quase todas as casas abastadas, nos Açores, estavam munidas
de um velho óculo de alcance, e algumas de binóculos, com
que se seguiam as chaminés dos paquetes e as árvores dos
veleiros molhadas na linha do horizonte. Na nossa casinha de
campo, na Vinha do Mão Roxa, sobre os vinhedos e lavas
lambidas ao longe pela ressaca, meu pai, — músico e um
pouco poeta, — trepava à varanda do telhado, sacava do
grande búzio, ao pôr do sol, e metendo e tirando a mão direi-
ta na rosca corada do calcário, tirava-lhe dois aulidos alternos
e melancólicos, intencionalmente repetidos, sinal de vida iso-
lada dado à vizinhança do longe. (4)
A seu filho Manuel, cedeu-lhe, o Poeta, a fardinha-maravilha
do marinheiro que não foi, pela modéstia de não ter sido en-
cartado, — (mas foi-o, lhe asseguro, meu Pai): — (marinheiro
genuíno honoris causa... pescador... valente homem do mar):
O teu filho é um peixe de metal:
Vai ao fundo das águas recolher
O lugre ardido, os sinos, o coral,
Ou a morte em flores de fogo, se morrer. (5)
Uma vez por outra, Nemésio, exibia-se com o bonézinho
lava de ilhéu feito ilha, é navio, arquipélago, continente, mundo do filho: aprumava-se e fazia-lhe a continência, sorrindo
cósmico saído do ovo, qual navio à deriva, perdido e achado na embevecido: — “Dá licença, senhor comandante?” — Certo
meia distância atlântica no mito do avante devagar, sem que sim, meu querido Pai.
retorno, com garantia de piloto na rota helicoidal do Poeta: Nemésio nega-se e afirma-se: « Não sou marinheiro (por
incontável modéstia, insisto eu), mas sou ilhéu e portanto
Ah, ovo que deixei, bicado e quente, embarcadiço. Além de que a vida é em si mesma uma ver-
Vazio de mim, no mar, dadeira derrota, uma vasta e tremenda singradura. » (6)
E que ainda hoje deve boiar, ardente Para meu Pai: « os navios são femininos, capciosos e
Ilha! ligeiros. Talham a linfa e o vento: umas vezes embalam como
E que ainda hoje deve lá estar! (1)
berços, outras abraçam-nos de amor. E, pouco a pouco, têm-
-nos na sua mão estrangeira e inconstante. Mas nenhum caver-
Em Nemésio, a sua ligação ao mar mede-se profunda (mais de name deste Mundo me pareceu valer o barquinho em que
mar do que de terra). Seu Pai, Victorino Gomes da Silva, músico Manuel do Luís e o Bicho iam de madrugada à cavala, para
amador de fina sensibilidade artística, foi seu búzio de mar, feito voltarem à tarde a dormir no sossego e na paz dos seus case-
patrão de costa no cantante de sua ilha:
bres. » (7)
Meu Pai! meu Pai! minha luz! Meu Pai, feito Corsário, hesita, balançando-se: « “Vou! Não
Meu génio! (nanja ruim!) vou?” Umas vezes: “Vou!” Outras: “Não!” Maldita condição
Ó meu sangue alvoraçado pendular da vontade! Perpétua indeterminação do disponível
Dos espantos de onde vim! e do gratuito...
.......................................... Mas já vou mesmo!... Despedi-me. Embarquei. Parti. Fiz,
Meu Pai andava queixoso, enfim, um par de pretéritos perfeitos e próprios das viagens...
Fechou-se comigo e deu Já o meu próprio escrever é fluido como o mar e, como ele,
Uma pancada na música ilógico. Uma cinza húmida e fresca tornou-se comum às
Que nunca me esqueceu! águas, ao céu, à alma, à cabeça. Só o coração vigia inteiro e
saudável nas primeiras derrotas do mar. (Eu durmo e o meu
Os motetes que meu Pai coração vigia.) Navegamos ambos, o coração e eu... » (8) — e
Me ensinou quando fugiu mais adiante o Poeta acrescenta:
Estão cantados no meu sangue « O navio, aliás, navega pelos seus próprios meios, sem
Como a água está no rio. (2) reboque mecânico ou animal, e é com o seu verdadeiro
8 JANEIRO 2002 • REVISTA DA ARMADA