Page 11 - Revista da Armada
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ambiente — a vida de bordo — que consegue enfim prender e  entranha do paquete, como o fartum a rato é do ninho de
         domar a minha imaginação vagabunda. Sinto-me enfim situa-  rato. Mas atiro as culpas para cima do mar sem limites.» (12)
         do. Há aqui bombordo e estibordo, proa e ré, deck e porão. E,  Meu Pai é tudo isto: poeta-ilha, poeta-mar, poeta-navio,
         diante de nós, uma linha imaginária a que chamamos hori-  poeta-sempre, poeta-tudo! Assim o digo e o sinto. Em Nemé-
         zonte.» (9)                                          sio a humanidade está no homem, alapardada na intimidade
           Mais adiante ainda, Nemésio, preocupado no exacto dos  do Poeta num up-to-date de doação gratuita, e não fora do
         termos náuticos lembra que: «No tempo do Açor dizia-se, a ré:  homem, desgarrada na sua perplexidade, inútil e inacessível
         cuidado com as hélices, e as pessoas curiosas e instruídas  por não se querer agasalhar.
         discutiam na casa de fumo sobre se se devia dizer “os hélices”  O mar de Nemésio é o mar onde o Poeta é:
         ou “as hélices”, e se era conveniente aguentar o h no começo
         da palavra... Como este, outros santos e eruditos costumes se         A Concha
         perderam. Já a menina “bem” não dá a volta ao convés, de pé
         atado à calça daquele afoito senhor. Que é do binóculo       A minha casa é concha. Como os bichos
         matutino, sensível à toninha emergente e ao fumo do          Segreguei-a de mim com paciência:
         petroleiro? » (10). E mais, sempre mais, avança Nemésio: «   Fachada de marés, a sonhos e lixos.
         Vejamos agora o mar. Chamar suave e bela a uma coisa         O horto e os muros só areia e ausência.
         destas, chata, mexida, com bocados brancos metidos no meio
         do cinzento! Gostar da água estendida como se fosse um solo,  Minha casa sou eu e os meus caprichos.
         — mas sem árvores, a não ser a árvore seca de algum pobre    O orgulho carregado de inocência
         iate em calmaria...! A hipocrisia lavrou a terra e o mar como  Se às vezes dá uma varanda, vence-a
         um verdadeiro escalracho. Já não se dizem as coisas directa-  O sal e os santos esboroou nos nichos.
         mente; todos fingem o que não são e armam ao que não têm.
         » (11)... Et encore plus, logo nos adianta o autor: «A verdade é  E telhados de vidro e escadarias
                                                                      Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
                                                                      Lareira aberta ao vento, as salas frias.

                                                                      A minha casa... Mas é outra a história:
                                                                      Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
                                                                      Sentado numa pedra de memória.  (13)
                                                                E assim — perante tudo — no mar, Nemésio é Ilha, “Ilha
                                                              Flutuante” à deriva com piloto atento e precavido, repito,
                                                              daí, que mesmo em terra, tenha consigo o seu sinete:
                                                              V.N. de (Valente Navio): (Mestre e Patrão de Salva-vidas): (15)

                                                                      Não subo ao Monte Brasil,
                                                                      Não sou facheiro nem facho:
                                                                      Tenho o navio no peito,
                                                                      Quando o quero sempre o acho. (14)


                                                              Notas
                                                               (1) O Bicho Harmonioso: O Canário de Oiro:O/C VOL.I
                                                                 POESIA(pg.138).
                                                               (2) Festa Redonda: Cantigas por alma de meu Pai: O/C VOL.I
                                                                 POESIA (pg.327).
                                                               (3) Corsário das Ilhas: A Tartaruga: O/C VOL.XVI (pg.117).
                                                               (4) Corsário das Ilhas: Pressentimentos: O/C VOL.XVI (pg.167).
                                                               (5) O Verbo e a Morte: Missão: O/C VOL.II POESIA (pg.294).
                                                               (6) Corsário das Ilhas: Embarques: O/C VOL.XVI (pg.121).
                                                               (7) Corsário das Ilhas: Embarques: O/C VOL.XVI (pg.124).
                                                               (8) Corsário das Ilhas: Vida de Bordo: O/C VOL.XVI (pg.67).
                                                               (9) Corsário das Ilhas: Vida de Bordo: O/C VOL.XVI (pg.68).
                                                              (10) Corsário das Ilhas: Vida de Bordo: O/C VOL.XVI (pg.69).
                                                              (11) Corsário das Ilhas: Vida de Bordo: O/C VOL.XVI (pg.69).
                                                              (12) Corsário das Ilhas: Vida de Bordo: O/C VOL.XVI (pg.70).
                                                              (13) O Bicho Harmonioso: A Concha: O/C VOL.I (pg.131).
                                                              (14) Festa Redonda: Cantigas à Ilha Terceira, à Cidade, à Praia, e
                                                                 aos Montes: (pg.275).
                                                              (15) V.N.M.P.S. : Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva.
         que só amo o mar rebentado e colérico, principalmente o das
         praias e dos recifes: Detesto cordialmente este mar enrolado,
         como massa a folhar pelo pasteleiro de bordo, — esta coisa
         estranha e estólida como um olho sem pálpebra, que já não
         tem nada que olhar. Ao menos,um veleiro é belo; um couraça-
         do é belo! Mas o alto mar parrana não é belo. Tudo se esvai e
         se esfuma nesta extensão sem referência. Cheira a tinta de
         óleo e a corda cozida por toda a parte. Sei bem que isto é da
                                                                                       REVISTA DA ARMADA • JANEIRO 2002 9
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