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CRÓNICA DA RESERVA NAVAL



               Uma História por Contar
               Uma História por Contar






               ão são de agora as dificuldades das Marinhas no exercício  zer em fazer combóios de embarcações em transgressão, até ao
               eficaz da fiscalização das suas águas territoriais, particu-  porto de Faro, onde as esperava o julgamento na Capitania.
        N larmente no respeitante às actividades ligadas à pesca.   Não era uma nem duas. Tanto quanto permitia a potência dos
           Todos os países têm os seus problemas e o nosso, acrescido  motores do navio para efectuar o reboque, assim se processava a
         com a falta de respeito pelo Mar que é manifesto nos tempos  apreensão que chegou a atingir cinco embarcações em simul-
         actuais, não deverá surpreender-se que outros nos substituam, a  tâneo.
         breve prazo, nas tarefas que a nós, mais do que aos outros, de-  E nesta actividade, cortando a rotina do dia a dia, sucediam-se
         veriam interessar.                                   as peripécias mais interessantes.
           Em 1967, quando me foi entregue o comando do NRP    Certa vez, a não mais de trezentos metros da praia de Monte
         “ALVOR”, uma lancha de fiscalização construída naquele ano  Gordo, cinco embarcações apresadas foram ligadas por suces-
         no Arsenal do Alfeite, e que deu nome à “classe”, foi consi-  sivos cabos de reboque, segundo a ordem conveniente, ficando
         derada prioritária a sua ida para o estuário do Sado, onde se  a maior imediatamente a ré do navio.
         avolumavam os conflitos entre os pescadores artesanais e os que  Ao longo da viagem, foi curioso verificar que os cerca de trin-
         se dedicavam à apa-                                                                    ta espanhóis que
         nha da ostra.                                                                          nelas viajavam não
           Era o tempo em                                                                       deixavam de se la-
         que este marisco                                                                       mentar, numa ladai-
         tinha mercado ga-                                                                      nha que mostrava to-
         rantido em França e,                                                                   da a sua desgraça,
         na sua apanha, se                                                                      acrescida da circuns-
         empregavam largas                                                                      tância de todos eles
         dezenas de trabalha-                                                                   serem pais de nume-
         dores.                                                                                 rosa família o que,
           Durou pouco tem-                                                                     pelas contas que fui
         po a actividade da                                                                     fazendo, deveria
         Alvor no porto de                                                                      rodar as trezentas
         Setúbal. Não foram,                                                                    crianças que a partir
         no entanto, poucos                                                                     daquele momento
         os autos de transgres-                                                                 iriam morrer à fome.
         são às embarcações                                                                      Como é evidente e
         vistoriadas, as deten-                                                                 nada influenciável
         ções dos apanha-                                                                       por este tipo de argu-
         dores da ostra que na                                                                  mentos, tanto mais
         maré cheia se ocu-                                                                     que já em semanas
         pavam ilegalmente                                                                      anteriores algumas
         no arrasto indiscrimi-                                                                 daquelas embarca-
         nado, provocando a  A guarnição do NRP “Alvor” em Faro (26-11-1968). 1.º Plano: Mar. Cabreiro – Práctico Guerreiro – 2.º TEN RN  ções tinham sido
         ira dos profissionais  José Pires de Lima – Sar. Machado – Cabo Matos. 2.º Plano: Gr. Oliveira – Mar. Graça – Mar. Guerreiro  apresadas com os
         de pesca locais, nem                                                                   mesmos prevarica-
         faltaram as cenas de pancadaria daqui resultantes e que apenas  dores, mantive-me de costas voltadas ao cenário que se desen-
         a presença da lancha evitava terminarem com consequências  rolava à popa, registando as ameaças de suicídio que alguns de
         graves.                                              mente mais fraca iam fazendo.
           Recordo, dessa época, o excelente entendimento com o  É uma distância grande de mais para um reboque naquelas
         capitão do porto de Setúbal, o Comandante Eugénio da Silva  condições, com o Levante a provocar incómodo e algum risco
         Gameiro, que fora meu professor da cadeira de navegação na  de abalroamento das pequenas embarcações, criando um certo
         Escola Naval.                                        clima de enervamento na guarnição da lancha.
           A costa algarvia, com base em Faro, foi o destino seguinte do  E quando os espanhóis iniciaram a tarefa de cortar os cabos de
         navio.                                               reboque, na esperança de uma quebra da nossa decisão em os
           Foi ali que me encontrei, juntamente com a “Aljezur” do  José  levar para Faro, obrigando a uma redobrado esforço para os
         Ferreira Martins, um RN do 8.º CEORN, mais tarde oficial supe-  reunir de novo, pouco faltou para que a nossa paciência
         rior do Instituto Hidrográfico, entregue à missão de me con-  chegasse ao limite.
         frontar com a poderosa “esquadra” piscatória espanhola, que de  Fomos obrigados a colocar dois marinheiros em duas das
         Huelva e Isla Cristina atacavam em força as nossas águas, sem  embarcações, para impor respeito e obstar a que a cena se
         qualquer respeito pelo que nos pertencia.            repetisse.
           E digo pertencia, porque hoje já pouco nos pertence.  Foi nessa altura que na última embarcação um pescador ini-
           Confesso que tendo embora costela, bem próxima, castelhana,  ciou um “strep tease” dramático, disposto a levar por diante o
         nunca achei graça ao procedimento sobranceiro que os  seu propósito de suicídio. Só não se entendia bem porque razão
         pescadores espanhóis manifestavam perante a nossa inferiori-  não haveria o dito de morrer vestido e optava por terminar os
         dade numérica naquela área. Daí que sentisse um especial pra-  seus dias em cuecas.

         24 ABRIL 2002 • REVISTA DA ARMADA
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