Page 134 - Revista da Armada
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CRÓNICA DA RESERVA NAVAL
Uma História por Contar
Uma História por Contar
ão são de agora as dificuldades das Marinhas no exercício zer em fazer combóios de embarcações em transgressão, até ao
eficaz da fiscalização das suas águas territoriais, particu- porto de Faro, onde as esperava o julgamento na Capitania.
N larmente no respeitante às actividades ligadas à pesca. Não era uma nem duas. Tanto quanto permitia a potência dos
Todos os países têm os seus problemas e o nosso, acrescido motores do navio para efectuar o reboque, assim se processava a
com a falta de respeito pelo Mar que é manifesto nos tempos apreensão que chegou a atingir cinco embarcações em simul-
actuais, não deverá surpreender-se que outros nos substituam, a tâneo.
breve prazo, nas tarefas que a nós, mais do que aos outros, de- E nesta actividade, cortando a rotina do dia a dia, sucediam-se
veriam interessar. as peripécias mais interessantes.
Em 1967, quando me foi entregue o comando do NRP Certa vez, a não mais de trezentos metros da praia de Monte
“ALVOR”, uma lancha de fiscalização construída naquele ano Gordo, cinco embarcações apresadas foram ligadas por suces-
no Arsenal do Alfeite, e que deu nome à “classe”, foi consi- sivos cabos de reboque, segundo a ordem conveniente, ficando
derada prioritária a sua ida para o estuário do Sado, onde se a maior imediatamente a ré do navio.
avolumavam os conflitos entre os pescadores artesanais e os que Ao longo da viagem, foi curioso verificar que os cerca de trin-
se dedicavam à apa- ta espanhóis que
nha da ostra. nelas viajavam não
Era o tempo em deixavam de se la-
que este marisco mentar, numa ladai-
tinha mercado ga- nha que mostrava to-
rantido em França e, da a sua desgraça,
na sua apanha, se acrescida da circuns-
empregavam largas tância de todos eles
dezenas de trabalha- serem pais de nume-
dores. rosa família o que,
Durou pouco tem- pelas contas que fui
po a actividade da fazendo, deveria
Alvor no porto de rodar as trezentas
Setúbal. Não foram, crianças que a partir
no entanto, poucos daquele momento
os autos de transgres- iriam morrer à fome.
são às embarcações Como é evidente e
vistoriadas, as deten- nada influenciável
ções dos apanha- por este tipo de argu-
dores da ostra que na mentos, tanto mais
maré cheia se ocu- que já em semanas
pavam ilegalmente anteriores algumas
no arrasto indiscrimi- daquelas embarca-
nado, provocando a A guarnição do NRP “Alvor” em Faro (26-11-1968). 1.º Plano: Mar. Cabreiro – Práctico Guerreiro – 2.º TEN RN ções tinham sido
ira dos profissionais José Pires de Lima – Sar. Machado – Cabo Matos. 2.º Plano: Gr. Oliveira – Mar. Graça – Mar. Guerreiro apresadas com os
de pesca locais, nem mesmos prevarica-
faltaram as cenas de pancadaria daqui resultantes e que apenas dores, mantive-me de costas voltadas ao cenário que se desen-
a presença da lancha evitava terminarem com consequências rolava à popa, registando as ameaças de suicídio que alguns de
graves. mente mais fraca iam fazendo.
Recordo, dessa época, o excelente entendimento com o É uma distância grande de mais para um reboque naquelas
capitão do porto de Setúbal, o Comandante Eugénio da Silva condições, com o Levante a provocar incómodo e algum risco
Gameiro, que fora meu professor da cadeira de navegação na de abalroamento das pequenas embarcações, criando um certo
Escola Naval. clima de enervamento na guarnição da lancha.
A costa algarvia, com base em Faro, foi o destino seguinte do E quando os espanhóis iniciaram a tarefa de cortar os cabos de
navio. reboque, na esperança de uma quebra da nossa decisão em os
Foi ali que me encontrei, juntamente com a “Aljezur” do José levar para Faro, obrigando a uma redobrado esforço para os
Ferreira Martins, um RN do 8.º CEORN, mais tarde oficial supe- reunir de novo, pouco faltou para que a nossa paciência
rior do Instituto Hidrográfico, entregue à missão de me con- chegasse ao limite.
frontar com a poderosa “esquadra” piscatória espanhola, que de Fomos obrigados a colocar dois marinheiros em duas das
Huelva e Isla Cristina atacavam em força as nossas águas, sem embarcações, para impor respeito e obstar a que a cena se
qualquer respeito pelo que nos pertencia. repetisse.
E digo pertencia, porque hoje já pouco nos pertence. Foi nessa altura que na última embarcação um pescador ini-
Confesso que tendo embora costela, bem próxima, castelhana, ciou um “strep tease” dramático, disposto a levar por diante o
nunca achei graça ao procedimento sobranceiro que os seu propósito de suicídio. Só não se entendia bem porque razão
pescadores espanhóis manifestavam perante a nossa inferiori- não haveria o dito de morrer vestido e optava por terminar os
dade numérica naquela área. Daí que sentisse um especial pra- seus dias em cuecas.
24 ABRIL 2002 • REVISTA DA ARMADA