Page 157 - Revista da Armada
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Na verdade, mais do que saber, tratava-  novos céus, novas estrelas, novos mares e  Nesta época o avanço do pensamento
         -se de ver, de ler o Mundo. Ler o Mundo e  novos ventos.              científico comporta muitas zonas de sombra
         dar fé do Mundo. Nós do que vemos e ouvimos  Foi neste quadro de transformação, e em  e a luta entre a tradição e a inovação persis-
         damos fé, diz Garcia de Orta. E numa época  nome da observação da Natureza, que a lição  tiam na ordem do dia. Estava aberto um
         em que os homens tinham                                                         clima de suspeição dos textos
         precisão de explicar o Mundo                                                    antigos porque liminarmente
         em que viviam, mas não dis-                                                     não resistiam, ou resistiam
         punham de utensilagem analí-                                                    mal, à comparação com as
         tica necessária, quando os                                                      novas observações da na-
         antigos paradigmas mentais já                                                   tureza. Não admira, pois, que
         tinham perdido toda, ou                                                         os conflitos entre conhecimen-
         quase toda, a capacidade de                                                     to empírico e experiência esta-
         explicação, é difícil sobreviver                                                lassem e deixassem rasto de
         numa atmosfera de mudança.                                                      confronto, como o que opôs os
           Pedro Nunes sobreviveu.                                                       homens do mar a Pedro
         De facto, o século XVI é a au-                                                  Nunes que, no seu Tratado em
         rora dos tempos modernos,                                                       defensam da Carta de Marear
         um tempo onde se cruzam e                                                       escrevia: “Bem say quam mal
         pervivem lado-a-lado os múl-                                                    sofrem os pilotos que fale na
         tiplos imaginários do Renas-                                                    India quem nunca foy nella; e
         cimento, organizados em pa-                                                     pratique no mar quem nelle
         radigmas que explicam, mas                                                      nam entrou”.
         também aprisionam, a forma                                                        Estes testemunhos, frequen-
         como os homens olham a                                                          tes nos textos portugueses qui-
         realidade.                                                                      nhentistas, deixam claramente
           Paradoxal, ou talvez não                                                      antever o clima de confronto
         tanto, que um dos imaginários                                                   entre inovação e resistência,
         dominantes tenha sido o                                                         experimentalismo e huma-
         mágico-animista, dentro do                                                      nismo em que essa informação
         qual se não distingue o pos-                                                    foi recepcionada e trabalhada,
         sível do impossível. Um tem-                                                    e representam, acima de tudo e
         po pré-cartesiano, sem núme-                                                    em primeiro lugar, inovações
         ros decimais, que desconhece                                                    da mentalidade que conduzi-
         ainda os números negativos.                                                     ram à transformação da infor-
           A numeração árabe começa                                                      mação em conhecimento.
         a arrumar a casa. Mas, sem tirar                                                  De onde se pode concluir
         nem pôr, esse é o tempo da ari-                                                 que o tempo mais fecundo do
         tmetização da realidade, quan-                                                  processo da criação se faz em
         do o instrumento disponível                                                     atmosfera de mudança, ou
         para a leitura do Mundo é a                                                     mesmo de ruptura, e que,
         aritmética que, no dizer de um                                                  muitas vezes a inovação mais
         dos seus primeiros seguidores  Reprodução do frontispício da edição de 1542 da obra “De Crespusculis” de Pedro Nunes.  fecunda é aquela que, como diz
         “é a escada por onde todas as                                                   Popper, nos ensina a usar ve-
         ciências sobem”.                   dos autores antigos foi  abalada. O importan-  lhos saberes para fazer coisas novas, ou, que
           As ciências diz ele… mas, mesmo para  te era ver as coisas, olhar o Mundo com  os  as mesmas coisas sejam, tão só, de uma
         Pedro Nunes, a quem a palavra não assus-  próprios olhos, longe da autoridade dos  maneira diferente. Aqui, non nova, sed nova.
         ta, não passa afinal “de um conhecimento  Antigos.                    Afinal, os clássicos já disseram tudo quanto
         habituado no entendimento: o qual se  Mas, voltemos, então, a Pedro Nunes.  havia para dizer.
         adquiriu por demostração: e demostração é  Durante toda a sua vida permaneceu muito
         aquele discurso que nos faz saber”.   bem informado sobre a produção ma-     Prof. Dr. A. A. Marques de Almeida
                                                                                      (Faculdade de Letras. Universidade de Lisboa)
           Como se vê, o seu discurso permanece,  temática e científica do seu tempo e, se por  (Síntese da Conferência de 22 de Janeiro de 2002, no
         na sua estrutura endógena, aristotélico, e ao  vezes não foi mais longe no abraçar e no  I Seminário Internacional de História da Náutica)
         definir demonstração, como sendo o discur-  difundir da inovação, como sucedeu com as
         so que nos faz saber, claramente se encerra  propostas copernicanas, tal facto ficou a  Bibliografia
         dentro dos limites da herança do estagirita.  dever-se à circunstância de a sociedade  ALBUQUERQUE, Luis de
           Pedro Nunes vive neste paradigma da  portuguesa estar, desde 1530-36, em proces-  “Livros de náutica portugueses de Pedro Nunes até
         aritmetização. E a importância do seu papel  so de blocagem social e mental.   1650” in A Náutica e a Ciência em Portugal. Notas
         histórico reside exactamente aqui, ou me-  As suas leituras são um interessante pro-  sobre as navegações, Lisboa, Gradiva, 1989,
                                                                               pp.101/130.
         lhor, na forma como, desde cedo, pretendeu  blema de recepção, essencial para a com-  IDEM
         levar a cabo duas tarefas ingentes: ordenar e  preensão das propostas e para o uso da sua  “Pedro Nunes e Diogo de Sá” in As navegações e a
         explicar a nova informação que circulava à  discursividade analítica, que ficou aquém  sua projecção na Ciência e na Cultura, Lisboa,
         sua volta sobre os desacertos do mundo, e  daquilo que nela se adivinha subjacente.  Gradiva, 1987, pp.57/80.
                                                                                 IDEM
         procurar novos instrumentos de análise do  António Sérgio dá-nos a chave deste silên-  “Sobre as prioridades de Pedro Nunes” in Estudos
         real para além da utensilagem disponível.   cio, por meio da qual percebemos melhor as  de História, Coimbra, Por ordem da Universidade,
           Mas estes tempos são tempos em que a  condições da recepção das novidades na tes-  1974, pp. 107/125
         usabilidade dos saberes e as novas in-  situra mental da sociedade portuguesa do  ALMEIDA, A. A. Marques de
         venções, da física à astronomia; da astrolo-  Século XVl. Silêncio prudente, naturalmen-  A Aritmética como sistema de descrição do real
                                                                               (1519-1679). Contributos para a formação da mentali-
         gia judiciária à matemática conduzem aos  te, como convinha numa sociedade tão dada  dade moderna em Portugal, Lisboa, Imprensa
         caminhos da novidade e da descoberta:  à denúncia e à perseguição.    Nacional-Casa da Moeda, 1994
                                                                                       REVISTA DA ARMADA • MAIO 2002  11
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