Page 270 - Revista da Armada
P. 270

A MARINHA DE D. MANUEL (28)



            O grão Pacheco, Aquiles lusitano
            O grão Pacheco, Aquiles lusitano




               o início do ano de                                                       Naiares (casta guerreira Hindu)
               1504, Afonso de Albu-                                                    ao serviço do Samorim. Duarte
         Nquerque tinha a noção                                                         Pacheco mandou construir
         clara de que a estratégia de                                                   uma estacada que protegia um
         Calecut era a de protelar todas                                                vau de acesso à cidade e à for-
         as negociações com os portu-                                                   taleza portuguesa, armou bem
         gueses, evitando entregar-lhes                                                 uma das caravelas (a outra
         a pimenta prometida, e deixar                                                  estava varada em fabricos,
         correr o tempo até que a mon-                                                  devido aos combates de 1503) e
         ção acabasse por impedir o                                                     uns quantos batéis, indo espe-
         regresso à costa africana e                                                    rar as tropas inimigas junto do
         acabasse por levar à perda dos                                                 passo de Cambalão, local
         navios. Talvez que, neste                                                      estratégico que já anteriormen-
         ponto, a sua perspicácia fosse                                                 te se revelara decisivo. A des-
         superior à de seu primo, que                                                   proporção de forças era esma-
         continuava a tentar obter van-                                                 gadora, mas os portugueses
         tagens esperando que fossem                                                    tinham alguma vantagem tác-
         cumpridas as promessas suces-                                                  tica e contavam, certamente,
         sivas de paz, amizade e com-                                                   com um melhor uso da arti-
         pensação pelos prejuízos e                                                     lharia e mais protecção das
         ofensas antigas. Afonso saiu da                                                suas embarcações e navios. O
         Índia a 27 de Janeiro, deixando                                                primeiro combate dá-se no
         o primo atrasado porque confi-                                                 Domingo de Ramos e resultou
         ara na pimenta que o Samorim                                                   numa estrondosa vitória dos
         lhe prometera e acabara por                                                    portugueses, que causaram
         não deixar embarcar. Soube                                                     centenas de baixas e sofreram
         ainda que o soberano de                                                        danos quase insignificantes.
         Calecut apenas esperava a par-                                                 Mas o Samorim não iria de-
         tida dos portugueses para  Duarte Pacheco Pereira.                             sistir. No Domingo de Páscoa,
         voltar a atacar Cochim, de                                                     nova vaga ataca o Passo de
         forma a reduzir o Rajá e a destruir a for-  tituem outros tantos caminhos que podem  Cambalão, mas volta a ser derrotada. Nes-
         taleza D. Manuel, que aí fora construída  ser percorridos por paraus carregados de  ta altura Duarte Pacheco resolve desem-
         pelos portugueses. Ficou então acordado                               barcar na praia, atacando as posições
         que ficaria na Índia a nau de Duarte                                  inimigas e forçando à sua retirada para um
         Pacheco Pereira acompanhada de duas   Cantava a bela Deusa que viriam  palmar próximo, deixando para trás mais
         caravelas, comandadas por Pêro Rafael e  Do Tejo, pelo mar que o Gama abrira  mortos e feridos e queimando duas
         Diogo Pires. Francisco Albuquerque nunca  Armadas que as ribeiras venceriam  povoações fiéis a Calecut, contudo, novo
         viria a chegar a Lisboa, nem dele mais  [...]                         ataque de paraus que assolavam a cara-
                                               Cantava dum que tem nos Malabares
         nada se soube, engolidos que foram pelo  [Rajá de Cochim]             vela, obrigou-o a voltar ao rio.
         mar o seu navio e o de Nicolau Coelho  Do sumo sacerdócio a dignidade,  Em Maio e Junho seguintes, o Samorim
         (que já fora à Índia com Gama e Cabral).  Que, só por não quebrar cós singulares  continuaria a tentar outras formas de
         Entretanto em Cochim iria escrever-se  Barões os nós que dera de amizade,  chegar à cidade de Cochim e ao coração do
         uma das páginas mais notáveis da      Sofrerá suas cidades e lugares,  poder português, constituído pela for-
         história da expansão portuguesa, pela  Com ferro, incêndios, ira e crueldade,  taleza e pelos três navios que guardavam a
         coragem e capacidade guerreira com que  Ver destruir do Samorim potente,  entrada da barra (a nau) e entravam pelos
         pouco mais de uma centena de portugue-  Que tais ódios terá coa nova Gente  canais mais acessíveis (caravelas) apoiando
         ses, comandados por Duarte Pacheco,   E canta como lá se embarcaria   a manobra dos batéis mais ligeiros. Uma
         viriam a resistir aos sucessivos ataques do  Em Belém o remédio deste dano,   campanha que lembrará muitas outras
         Samorim, defendendo a fortaleza e o Rajá  Sem saber o que em si ao mar traria,  ocorridas nos séculos que se seguiram, por
                                               O grão Pacheco, Aquiles lusitano
         de Cochim.                            [...]                           entre braços de rios, onde navios ligeiros
           A cidade fica localizada numa região  Mas já chegado aos fins Orientais,  apoiavam a manobra de pequenas embar-
         lagunar, pejada de ilhas e passagens  E deixado em ajuda do gentio    cações com pessoal que saltava para a vaza
         baixas, muito arborizadas, que permitem  Rei de Cochim, com poucos naturais,  pesada ou o espesso mangal, arrastando-se
         abrigo e que podem transformar-se em  Nos braços do salgado e curvo rio,  com coragem de leão até outros tantos
         armadilhas mortais, mas os portugueses já  Desbaratará os Naires infernais  “Passos de Cambalão”, onde combatiam
         contavam com a experiência do ano anteri-  No passo Cambalão, tornando frio  “Naires” de muitos “Calecutes”. Já assim
         or e é provável que tivessem feito as suas  De espanto o ardor imenso do Oriente  era a Marinha no tempo de D. Manuel.
         próprias explorações valendo-se de gente  Que vá tanto obrar tão pouca gente
         local de confiança, ao serviço do Rajá. De      Camões, Lusíadas, Canto X                J. Semedo de Matos
         qualquer forma, os múltiplos canais cons-                                                         CFR FZ

         16 AGOSTO 2002 • REVISTA DA ARMADA
   265   266   267   268   269   270   271   272   273   274   275