Page 124 - Revista da Armada
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Conversando com…
Conversando com…
um velho faroleiro
um velho faroleiro
oão da Silva Neto, 78 anos, nasceu em PM – E como era a
S. Martinho do Porto. Sétimo de oito irmãos, vida de um faroleiro
Jfilhos do Chefe da Central Eléctrica, onde era naquele tempo?
produzida com grupos motor-gerador Diesel, JSN – No Farol do
a electricidade para consumo público e privado Penedo da Saudade
da vila. Aí passou toda a sua infância, tendo es- éramos 3 faroleiros
tudado até ao 4º ano do liceu. De seu pai, que mais o chefe. A elec-
também era músico recebeu ensinamentos desta tricidade era produzi-
arte e, mais tarde, de electricidade. Aos 4 anos da por dínamos que
tocava viola e aos 15 já ganhava algum dinhei- alimentavam uma
ro tocando acordeão em bailes. Mas foi aos 10 lâm pada de 6 Kw.
anos que se iniciou como aprendiz de barbeiro, A rotação ainda era
profissão que foi abraçando. conseguida através de
Com 20 anos, estando a estudar electricidade uma máquina de relo-
para concorrer a um lugar de técnico nos CTT, joaria cujo peso tinha
viu na Delegação Marítima local, um anúncio que ser içado de duas
do Concurso de Admissão de Faroleiros e, jun- em duas horas. Fazía-
tamente com um amigo, fez a opção por esta mos quartos de vigia
vida, tendo ambos sido admitidos. ao equipamento e ao
Casado em 1947 com D. Generosa, é chama- nevoeiro, de 4 horas
do em 1949, para iniciar a sua nova vida, como cada, pelo que no in-
estagiário no Farol do Penedo da Saudade, em verno nunca folgáva-
S. Pedro de Moel. Seis meses volvidos é transfe- mos. No verão, folga-
rido para o Farol das Berlengas onde esteve 18 va uma em cada três
meses até ir frequentar o Curso de Formação de noites, por estas serem
Faroleiros na antiga Escola de Faroleiros anexa mais curtas. O chefe só
ao Farol de Leça. fazia quartos quando
alguém ia de licença. O Cte Proença Mendes entrevistando o Faroleiro Chefe Neto na Direcção de Faróis.
ENTREVISTA CONDUZIDA PELO CTEN PROENÇA Além dos quartos, o
MENDES (DIRECÇÃO DE FARÓIS) farol tinha que estar a brilhar e as manutenções ção “Berlenga” fazia o abastecimento duas vezes
feitas. Trabalhava-se muito naquele tempo, e era por semana. Tínhamos um burro, o célebre “Rus-
Proença Mendes (PM) – Passaram 56 anos assim em todos os faróis. so”, que transportava os mantimentos desde o cais
desde que optou pela carreira de faroleiro. Foi PM – S. Pedro de Moel ficava ali perto de até lá acima ao farol. O Russo desaparecia sempre
difícil consegui-lo? S. Martinho ... na véspera da chegada da embarcação. Era muito
João da Silva Neto (JSN) – Foi muito difícil JSN – Tive essa sorte porque o meu filho nasceu esperto. Uma vez por mês, ficava apenas um homem
porque éramos algumas centenas a concorrer no dia em que fui chamado para prestar serviço, no farol, e ia toda a gente a terra para pagar as contas,
para apenas 30 vagas. As coisas estavam difíceis e isso foi tido em consideração. fazer algumas compras e passear. Armazenávamos
lá fora e aqui o emprego era estável e tínhamos PM – Seis meses depois vai para as Berlengas a água da chuva em cisternas e o abastecimento de
direito à reforma. onde está 18 meses até ao curso, e regressa por combustível fazia-se uma vez por ano. Vinha a “Ber-
mais 5 anos. Um farol muito isolado. Como era lenga” carregada de bidões de 200 litros, com uns
viver naquelas condições? homens de Ferrel, que eram pagos por cada bidão
JSN – Éramos 8 faroleiros mais o chefe do fa- que rolassem até ao farol, o que era um trabalho du-
rol, que era um Sargento Condutor de Máquinas. ríssimo. Tínhamos ainda um rádio para comunicar
Além do farol tínhamos o Sinal Sonoro, um pouco com Peniche e para enviar três vezes por dia, os me-
afastado, mas que também era preciso guarnecer teogramas para a Estação Rádio Naval de Cascais,
quando havia nevoeiro. Tratava-se de um conjunto com as observações meteorológicas.
de motores diesel, que actuavam dínamos produ- PM – E como ocupavam o vosso tempo?
zindo corrente contínua que por sua vez entrava JSN – Estávamos em 1950 e a ilha era prati-
em grandes comutatrizes para a transformar em camente virgem. Apanhávamos perceves enor-
corrente alterna. Esta corrente era utilizada para mes e em grandes quantidades, mas o forte era a
fazer vibrar umas membranas de mais de um cen- pesca e a caça para comer. Havia muitos coelhos
tímetro de espessura, produzindo um som que, que foram introduzidos pelos faroleiros e a Di-
ampliado em grandes trompas, se conseguia ouvir recção de Faróis forneceu uma caçadeira. Como
em S. Martinho do Porto com condições meteoro- não havia frigoríficos íamos caçando e pescando
lógicas favoráveis. Era ensurdecedor. Quando não conforme necessário.
havia nevoeiro, a vida era mais folgada. PM – E diversões?
PM – E o vosso abastecimento doméstico? JSN – Fazíamos todas as comemorações, des-
JSN – Bom, a agricultura lá não dava nada, pois os de o Carnaval à Passagem de Ano. Havia mais
coelhos, as ratazanas e as gaivotas devoravam tudo. de 10 crianças no farol e tocava-se musica, havia
João da Silva Neto no início da carreira. Encomendávamos tudo em Peniche e a embarca- máscaras, jogos, etc..
14 ABRIL 2003 U REVISTA DA ARMADA