Page 125 - Revista da Armada
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PM – E visitas?                    PM – Ai já estavam menos isolados.  turnos de quatro dias no Bugio, descansando outro
           JSN – No forte vivia um casal que o guardava até   JSN – Sim, íamos com frequência a Azóia e  tanto. Cada turno tinha três faroleiros. Nos dias da
         ao verão, altura em que era utilizado como pousa-  éramos abastecidos por um merceeiro que lá ia  rendição, saía de casa com um cesto de verga com
         da. Junto ao cais havia um bairro de pes-                                    a alimentação para quatro dias, indo a
         cadores que o utilizavam quando fazia                                        pé apanhar o combóio das 05:30, em
         bom tempo. No verão a ilha era muito                                         Cascais. Chegado de madrugada à Di-
         visitada. Havia carreiras diárias no “Novo                                   recção, muitas vezes o patrão da em-
         Rumo”. Vinham muitos grupos que to-                                          barcação recusava-se a fazer o trajecto
         mavam as suas merendas à sombra da                                           devido ao estado do mar. Voltava para
         torre do farol. Deixavam aí a sua comida                                     casa e repetia o trajecto no dia seguinte
         e uns garrafões de vinho e iam visitar a                                     e por vezes no outro a seguir. Era muito
         ilha e o farol antes de merendar. Um dia,                                    duro aquele trajecto, e tinha que renovar
         o “Russo” tirou a rolha de um garrafão e                                     os mantimentos.
         entornou-o, bebendo todo o vinho. Os                                           PM – E no farol?
         donos aperceberam-se e fartaram-se de                                          JSN – Era muito húmido! Tinha a sen-
         rir da esperteza do animal. O Coman-                                         sação de estar sempre com a roupa
         dante Andrade e Silva (pai) passava lá                                       molhada. Pescávamos quando o tem-
         largos períodos no verão, e tinha uma                                        po o permitia e até trazíamos algum
         adoração pelo Russo. Era a única pessoa                                      peixe para terra.
         que brincava com ele sem se arriscar a                                         Havia lá um canhão original da for-
         ser mordido.  De vez em quando jogá-                                         taleza, que utilizávamos para informar
         vamos futebol contra equipas de pesca-                                       o salva-vidas quando avistávamos algu-
         dores que por ali passavam. Eram jogos                                       ma embarcação em perigo. Era a única
         duros pois ninguém queria perder.                                            forma de comunicar com terra nesse
           Um dia mandaram-nos fardar para ir                                         tempo. Esse canhão, que era lindo, foi
         receber uma alta individualidade que                                         retirado nos anos 70 e entregue no
         estaria a chegar ao cais. Chegados   Faroleiros que prestavam serviço no Farol das Berlengas em 1953 (o faroleiro   Museu de Marinha.
         lá, verificámos que se tratava do Dr.   Neto está sentado em baixo, à esquerda).  PM – Aí é que havia temporais?
         Oliveira Salazar que foi visitar o farol                                       JSN – A coisa mais maravilhosa era
         acompanhado do Ministro da Marinha. Chegou  numa carroça puxada por uma mula. Um dia  ver a ondulação pelas frestas das guaritas. Adora-
         na lancha “Berlenga” e depois embarcou, junto  passou por lá um tornado que levou todos os te-  va ver os navios a vencer as ondas. Era uma coisa
         ao forte, num destroyer que vinha a fazer escolta.  lhados. Um dos meus camaradas voou seis me-  linda. Por vezes ficávamos vários dias à espera da
         No inverno só recebíamos navios da Marinha ou  tros no ar e foi cair num arbusto. O mar estava  rendição, cheguei a aguentar 10 dias, mas houve
         alguns pesqueiros portugueses e espanhóis.  como nunca o tinha visto.   quem esperasse mais. Tínhamos umas reservas
           PM – E os temporais na Berlenga?   PM – E depois do Espichel?       de alimentação à base de conservas de atum e
           JSN – O mar naquele canal entre a ilha e o   JSN – Como sempre estudei electricidade e fui  sardinha, farinha, bolachas, azeite e leite con-
         Cabo Carvoeiro é muito mau e chegámos a estar  sempre o primeiro dos cursos que frequentei, fui  densado. Mexilhões, robalos, lapas e bolachas
         19 dias sem abastecimento. Nessas alturas, cada  convidado para vir para a Direcção de Faróis, para,  combinavam muito bem nesses dias.
         família dava um pouco de farinha e cozíamos o  com o Sargento Artífice Mário Oliveira, iniciar a   PM – Esteve então aqui na direcção a fazer
         pão lá no farol. Era uma festa para as crianças,  transformação dos faróis para corrente alterna. Antes  a modernização dos geradores. Chegou a Che-
         pois iam recolher lenha e depois faziam-se uns  ainda estive seis meses no Farol do Bugio a subs-  fe da Oficina de Electricidade e depois voltou
         pães em forma de bonecos para elas.  tituir o pessoal que ia de licença. Foi nessa altura  ao Bugio.
           Um dia houve lá um naufrágio de uma embar-  que se discutia o porquê do farol se chamar Bugio,   JSN – Por imposições da carreira, tinha que
         cação de pesca com turistas a bordo.                                         ir chefiar um farol, e estive no Bu-
         Morreram 5 pessoas, e ainda conse-                                           gio entre 1975 e 1977. As condições
         guimos salvar duas.                                                          eram as mesmas, só que nessa altura
           PM – Entretanto, o Júlio, seu filho                                         já tinham comunicações VHF com a
         aproximava-se da idade escolar e tive-                                       Direcção de Faróis. Poucos anos de-
         ram que vir para terra ...                                                   pois participei na automatização do
           JSN – Pois, estava combinado que                                           farol, deixando de ser guarnecido e
         na Berlenga só estavam crianças até                                          apenas visitado quinzenalmente para
         essa idade. Fui fazer uma comissão de                                        manutenção preventiva. Depois fui
         4 anos no Farol do Cabo Espichel. O                                          chefiar a Balizagem do Rio Tejo até
         Júlio frequentava a Escola Primária da                                       me reformar em 1981.
         Azóia e percorria diariamente os dois                                          Na Direcção de Faróis, alguns sa-
         quilómetros e meio que a separavam do                                        biam da sua profissão anterior de bar-
         farol. Comprei-lhe uma bicicleta, mas                                        beiro, e não hesitaram em o recomen-
         mesmo assim era muito duro no inver-                                         dar ao Director quando este, um dia,
         no, com os caminhos enlameados.  Familiares dos faroleiros que prestavam serviço no Farol das Berlengas em 1953.  foi chamado ao Director Geral de Ma-
           PM – E o Farol do Cabo Espichel?                                           rinha, precisando de um corte de ca-
           JSN – Era um serviço desumano, pois os mo-  apesar de estar instalado no Forte de S. Lourenço.  belo com urgência. Aí começou uma “carreira”
         tores do Sinal Sonoro estavam muito velhos e da-  Foi-me explicado pelos mais antigos que o nome  paralela que ainda hoje dura, e todas as segundas
         vam muito trabalho a manter. Estávamos sempre  se devia à pedra onde assentava o forte, o que foi  e terças feiras, cá o encontramos e escutamos as
         a inventar formas de lhes tapar as fugas. Ficava  confirmado pelo Cte Borges de Carvalho, Subdi-  suas inúmeras histórias.
         com o sabor do petróleo na boca durante dias.  rector de Faróis na altura.  Além de um reconhecido profissional e de um
         Quando estava nevoeiro, ia um de nós para a   PM – E como se vivia no Bugio naquele  excelente músico, o Faroleiro Chefe Neto, é tam-
         casa do sinal, a cerca de um quilómetro do fa-  tempo?                bém um poeta, e não pudemos deixar de inserir
         rol. Naquele tempo éramos apenas 6 faroleiros   JSN – Era muito mau! Eu vivia com a minha  nestas páginas dois poemas que dedicou a dois
         para guarnecer ambos.              mulher e filho no Farol da Guia, em Cascais. Fazia  dos seus queridos faróis.
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