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A MARINHA DE D. MANUEL (35)
A personalidade de um capitão
A personalidade de um capitão
e a acção de alguns dos primeiros capi- Malaca (assim o mandava D. Manuel), en- de deslumbrou os portugueses, como seria
tães enviados à Índia, durante a primei- quanto a Frol de la Mar regressaria a Lisboa de esperar. Colocada numa pequena ilha à
Sra década da presença portuguesa, foi sob o comando de Francisco de Távora. E entrada do Golfo Pérsico, por onde passava
alvo de acesas discussões e conjecturas contra- para que tudo isto fosse cumprido, era pre- uma boa parte do comércio do Oriente para o
ditórias entre historiadores, julgo que nenhu- ciso que Albuquerque ficasse pelo Mar Ver- Mediterrâneo, tinha um estraordinário valor
ma delas tem tanta razão de ser como as que melho, apenas o tempo indispensável, por- estratégico e era riquíssima. A esquadra tinha
rodeiam a personalidade de Afonso de Albu- que, de outra forma nunca chegaria à Índia um poder de combate que podia afrontar os
querque. É difícil olhar para os documentos a tempo de permitir estas trocas. Na mesma inúmeros navios fundeados em Ormuz, mas
e apreciar os factos evitando os cerca de 400 homens que
julgamentos que acabam por transportava eram escassos
condicionar o próprio discur- para dar combate em terra.
so e, naturalmente, acabam Mas não foi ainda aqui que
por levar à construção de um as relações de Albuquerque
personagem que tanto pode com os restantes capitães
ser o paradigma do herói clás- se azedaram drasticamen-
sico, como uma figura pérfi- te. Ormuz assustou-se com
da, toldada pela ambição, se- o poder naval português (e
dento de sangue e desprovido talvez com o rasto de sangue
de sensatez. Haverá sempre que tinha deixado na costa
um pouco de exagero, numa arábica) e prestou vassalagem
e noutra posição, mas pare- ao rei de Portugal, compro-
ce-me evidente que o facto de metendo-se ao pagamento
ter partido para a Índia em anual de 15000 xerafins e a
1506 com uma carta que o no- outros benefícios comerciais.
meava como sucessor de D. A 24 de Outubro começou a
Francisco de Almeida, quan- A Fortaleza de Ormuz. ser construída uma fortale-
do chegasse o ano de 1509, za, e a 13 de Novembro os
foi um erro de D. Manuel que envenenou carta de D. Manuel, está escrito que – depois capitães requerem que se deixe a cidade ou
toda a sua acção como capitão da armada da conquista de Socotorá – “Afonso de Al- não será possível passar à Índia nesse ano,
do Mar Vermelho. Não creio que Afonso de buquerque com nossa armada que lhe orde- ficando numa posição indefensável. João da
Albuquerque tivesse procedido como pro- namos, para guardar a boca do Mar Roxo e Nova, em face das circunstâncias em que ali
cedeu com o seu próprio Capitão-Mor, Tris- tomar as naus dos mouros e se aproveitar se encontrava e das ordens que tinha, já o ti-
tão da Cunha, ou que afrontasse os restantes de todas as presas que neles pudesse fazer, nha requerido várias vezes, mas sem nenhum
capitães da esquadra que comandava, des- e assentar trauto [comércio] nos lugares que resultado ou mesmo resposta, e este pedido
prezando claramente o poder do Vice-Rei, e lhe parecesse proveitoso, assim como Zeila, mereceria um absoluto desdém do Capitão
tomando as iniciativas que tomou no Golfo Barbara e Adem, e para também ir a Ormuz e Mor que vexou os restantes. Albuquerque
Pérsico, se não tivesse no bolso a tal carta que Cambaia, e saber de todas as coisas daquelas não queria ouvir nada que significasse dei-
lhe garantia vir a ser o governador da Índia partes”. Albuquerque, logo que deixou Soco- xar Ormuz e seguir para a Índia e isso era
daí a pouco mais de dois anos. torá, reuniu um conselho com todos os capi- um claro desrespeito das ordens explícitas
Em Agosto de 1507, quando Tristão da tães e decidiu ir imediatamente para a costa que tinha do rei e um comprometimento dos
Cunha partiu para a Índia, depois da con- oriental da Península Arábica, seguramente planos. João da Nova foi alvo de uma ofen-
quista de Socotorá, Albuquerque ficou com com o intuito de chegar a Ormuz de forma sa pública com uma agressão gravíssima em
uma armada de seis navios: a nau Cirne, co- tão breve quanto possível. Este processo le- que Albuquerque, num acesso de fúria, lhe
mandada por ele próprio, a Rei Grande com vantou concerteza grandes contrariedades arrancou pelos da própria barba e a indisci-
Francisco de Távora, a Rei Pequeno com Ma- nos restantes capitães que trocavam as ricas plina estava generalizada. António de Cam-
nuel Teles, a Rosa com António de Campos, presas das naus de Meca, pelas miseráveis pos, Afonso Lopes da Costa e Manuel Teles
uma Taforeia comandada por Afonso Lopes aldeias da costa que eram conquistas fáceis, abandonam a esquadra e dirigem-se à Índia
da Costa, e a Frol de la Mar de João da Nova, mas que apenas lhes trouxeram cabras e vi- para apresentar queixas ao vice-rei. Ficando
que fora dispensada por Tristão da Cunha tualhas. A decisão de Albuquerque (até aqui numa situação insustentável, Albuquerque
como reforço, mas que deveria passar à Índia obedecida por todos) de não entrar no Golfo finalmente desistiu dos seus objectivos direc-
ainda dentro dessa monção, para que viesse de Adem e seguir para norte, em direcção ao tos: autorizou João da Nova a ir para a Índia
para o reino em Janeiro seguinte, carrega- Golfo Pérsico, é justificada com a necessida- e recolheu com Francisco de Távora a Soco-
da de especiaria. É importante reforçar esta de de reabastecer os navios que se encontra- torá. Terminava assim uma campanha ingló-
missão de João da Nova, porque D. Manuel vam em franca penúria, mas o que pareceu ria marcada, sobretudo, pela falta de senso
teve o cuidado de escrever numa carta en- aos restantes capitães uma medida pontu- e compreensão. Mas voltaremos a falar de
viada a D. Francisco de Almeida que João da al, tornou-se uma via obsessiva que vai de alguns dos seus pormenores.
Nova deve chegar à Índia e mudar da Frol de Calaiate a Curiate, Mascate, Soar, Orfação e, Z
la Mar para a Rei Grande, “por ser naao nova finalmente, Ormuz, onde a esquadra chega J. Semedo de Matos
e mui booa”, seguindo com o Vice Rei para a 25 de Setembro. A imponência desta cida- CFR FZ
REVISTA DA ARMADA U ABRIL 2003 17