Page 127 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. MANUEL (35)




          A personalidade de um capitão
          A personalidade de um capitão





             e a acção de alguns dos primeiros capi-  Malaca (assim o mandava D. Manuel), en-  de deslumbrou os portugueses, como seria
             tães enviados à Índia, durante a primei-  quanto a Frol de la Mar regressaria a Lisboa  de esperar. Colocada numa pequena ilha à
         Sra década da presença portuguesa, foi  sob o comando de Francisco de Távora. E  entrada do Golfo Pérsico, por onde passava
         alvo de acesas discussões e conjecturas contra-  para que tudo isto fosse cumprido, era pre-  uma boa parte do comércio do Oriente para o
         ditórias entre historiadores, julgo que nenhu-  ciso que Albuquerque ficasse pelo Mar Ver-  Mediterrâneo, tinha um estraordinário valor
         ma delas tem tanta razão de ser como as que  melho, apenas o tempo indispensável, por-  estratégico e era riquíssima. A esquadra tinha
         rodeiam a personalidade de Afonso de Albu-  que, de outra forma nunca chegaria à Índia  um poder de combate que podia afrontar os
         querque. É difícil olhar para os documentos  a tempo de permitir estas trocas. Na mesma  inúmeros navios fundeados em Ormuz, mas
         e apreciar os factos evitando                                                     os cerca de 400 homens que
         julgamentos que acabam por                                                        transportava eram escassos
         condicionar o próprio discur-                                                     para dar combate em terra.
         so e, naturalmente, acabam                                                        Mas não foi ainda aqui que
         por levar à construção de um                                                      as relações de Albuquerque
         personagem que tanto pode                                                         com os restantes capitães
         ser o paradigma do herói clás-                                                    se azedaram drasticamen-
         sico, como uma figura pérfi-                                                        te. Ormuz assustou-se com
         da, toldada pela ambição, se-                                                     o poder naval português (e
         dento de sangue e desprovido                                                      talvez com o rasto de sangue
         de sensatez. Haverá sempre                                                        que tinha deixado na costa
         um pouco de exagero, numa                                                         arábica) e prestou vassalagem
         e noutra posição, mas pare-                                                       ao rei de Portugal, compro-
         ce-me evidente que o facto de                                                     metendo-se ao pagamento
         ter partido para a Índia em                                                       anual de 15000 xerafins e a
         1506 com uma carta que o no-                                                      outros benefícios comerciais.
         meava como sucessor de D.                                                         A 24 de Outubro começou a
         Francisco de Almeida, quan-  A Fortaleza de Ormuz.                                ser construída uma fortale-
         do chegasse o ano de 1509,                                                        za, e a 13 de Novembro os
         foi um erro de D. Manuel que envenenou  carta de D. Manuel, está escrito que – depois  capitães requerem que se deixe a cidade ou
         toda a sua acção como capitão da armada  da conquista de Socotorá – “Afonso de Al-  não será possível passar à Índia nesse ano,
         do Mar Vermelho. Não creio que Afonso de  buquerque com nossa armada que lhe orde-  ficando numa posição indefensável. João da
         Albuquerque tivesse procedido como pro-  namos, para guardar a boca do Mar Roxo e  Nova, em face das circunstâncias em que ali
         cedeu com o seu próprio Capitão-Mor, Tris-  tomar as naus dos mouros e se aproveitar  se encontrava e das ordens que tinha, já o ti-
         tão da Cunha, ou que afrontasse os restantes  de todas as presas que neles pudesse fazer,  nha requerido várias vezes, mas sem nenhum
         capitães da esquadra que comandava, des-  e assentar trauto [comércio] nos lugares que  resultado ou mesmo resposta, e este pedido
         prezando claramente o poder do Vice-Rei, e  lhe parecesse proveitoso, assim como Zeila,  mereceria um absoluto desdém do Capitão
         tomando as iniciativas que tomou no Golfo  Barbara e Adem, e para também ir a Ormuz e  Mor que vexou os restantes. Albuquerque
         Pérsico, se não tivesse no bolso a tal carta que  Cambaia, e saber de todas as coisas daquelas  não queria ouvir nada que significasse dei-
         lhe garantia vir a ser o governador da Índia  partes”. Albuquerque, logo que deixou Soco-  xar Ormuz e seguir para a Índia e isso era
         daí a pouco mais de dois anos.     torá, reuniu um conselho com todos os capi-  um claro desrespeito das ordens explícitas
           Em Agosto de 1507, quando Tristão da  tães e decidiu ir imediatamente para a costa  que tinha do rei e um comprometimento dos
         Cunha partiu para a Índia, depois da con-  oriental da Península Arábica, seguramente  planos. João da Nova foi alvo de uma ofen-
         quista de Socotorá, Albuquerque ficou com  com o intuito de chegar a Ormuz de forma  sa pública com uma agressão gravíssima em
         uma armada de seis navios: a nau Cirne, co-  tão breve quanto possível. Este processo le-  que Albuquerque, num acesso de fúria, lhe
         mandada por ele próprio, a Rei Grande com  vantou concerteza grandes contrariedades  arrancou pelos da própria barba e a indisci-
         Francisco de Távora, a Rei Pequeno com Ma-  nos restantes capitães que trocavam as ricas  plina estava generalizada. António de Cam-
         nuel Teles, a Rosa com António de Campos,  presas das naus de Meca, pelas miseráveis  pos, Afonso Lopes da Costa e Manuel Teles
         uma Taforeia comandada por Afonso Lopes  aldeias da costa que eram conquistas fáceis,  abandonam a esquadra e dirigem-se à Índia
         da Costa, e a Frol de la Mar de João da Nova,  mas que apenas lhes trouxeram cabras e vi-  para apresentar queixas ao vice-rei. Ficando
         que fora dispensada por Tristão da Cunha  tualhas. A decisão de Albuquerque (até aqui  numa situação insustentável, Albuquerque
         como reforço, mas que deveria passar à Índia  obedecida por todos) de não entrar no Golfo  finalmente desistiu dos seus objectivos direc-
         ainda dentro dessa monção, para que viesse  de Adem e seguir para norte, em direcção ao  tos: autorizou João da Nova a ir para a Índia
         para o reino em Janeiro seguinte, carrega-  Golfo Pérsico, é justificada com a necessida-  e recolheu com Francisco de Távora a Soco-
         da de especiaria. É importante reforçar esta  de de reabastecer os navios que se encontra-  torá. Terminava assim uma campanha ingló-
         missão de João da Nova, porque D. Manuel  vam em franca penúria, mas o que pareceu  ria marcada, sobretudo, pela falta de senso
         teve o cuidado de escrever numa carta en-  aos restantes capitães uma medida pontu-  e compreensão. Mas voltaremos a falar de
         viada a D. Francisco de Almeida que João da  al, tornou-se uma via obsessiva que vai de  alguns dos seus pormenores.
         Nova deve chegar à Índia e mudar da Frol de  Calaiate a Curiate, Mascate, Soar, Orfação e,            Z
         la Mar para a Rei Grande, “por ser naao nova  finalmente, Ormuz, onde a esquadra chega    J. Semedo de Matos
         e mui booa”, seguindo com o Vice Rei para  a 25 de Setembro. A imponência desta cida-             CFR FZ
                                                                                       REVISTA DA ARMADA U ABRIL 2003  17
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