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A MARINHA DE D. MANUEL (36)




           Cojeatar, o homem forte de Ormuz
            Cojeatar, o homem forte de Ormuz



               s acontecimentos de Ormuz de 1507  que um funcionário da sua corte, sabedor de  cios da guerra contra os mouros. Relata-lhe
               foram lamentáveis para todos os seus  todas as contingências que o envolviam, aca-  como tem já abastecimentos para dois anos,
         Oprotagonistas, e, sobretudo, criaram  basse por ser o verdadeiro senhor da terra,  e, pelo tom das suas palavras, parece óbvio
         à volta de Albuquerque uma aura de que não  manobrando a sua vida, jogando com amigos  que a sua acção se integrava perfeitamente
         se livraria com facilidade (que o marcou para  e inimigos, facilitando vinganças e favores,  na estratégia definida por D. Manuel. A situ-
         a História) mas que – mais                                                        ação podia resumir-se, pois,
         uma vez – tem de ser anali-                                                       desta forma: para Albuquer-
         sada no contexto da época e                                                       que a campanha só se com-
         da situação. Já foi dito que os                                                   pletava com a construção da
         capitães que o acompanha-                                                         fortaleza de Ormuz e com o
         ram nesta segunda esqua-                                                          estabelecimento de um po-
         dra tinham em mente uma                                                           der português semelhante,
         campanha à entrada do Mar                                                         talvez, ao que era exercido
         Vermelho com grossas presas                                                       em Ceuta; Cojeatar, por seu
         de que muito beneficiariam.                                                        lado, apenas aceitara a tute-
         É natural que assim pensas-                                                       la de um senhor do mar, mas
         sem. Já fora a preferência das                                                    não o queria na sua terra, da
         “grossas presas” obtidas no                                                       mesma forma que lá não es-
         Mediterrâneo, no Norte de                                                         tavam os homens do Sha Is-
         África e no Reino de Gra-                                                         mail, a quem pagava para
         nada, que atrasara por doze                                                       que deixasse vir as carava-
         anos a passagem do Cabo                                                           nas. Ambos sabiam que do
         Bojador no tempo do Infan-                                                        Egipto estava prestes a sair
         te D. Henrique (como nos diz                                                      uma esquadra que bem pode-
         Zurara). Contudo a ideia de                                                       ria ir atacar os portugueses a
         Albuquerque parece ser di-  Mural de Chihil Sutun representando o Sha Ismail a combater um cavaleiro turco.  Ormuz, mas talvez não tives-
         ferente dos seus súbditos:                                                        sem dela o mesmo entendi-
         primeiro ele sabe que vai ser o governador  e, sobretudo, mantendo o Sheik alheio aos  mento. Cojeatar criou todo o tipo de proble-
         e que ficará na Índia por muitos anos, tendo  reais problemas do governo. Em 1507, a fi-  mas à edificação da fortaleza, mas hesitava
         uma imediata preocupação de levar a cabo  gura dominante e o verdadeiro governador  em expulsar os portugueses, porque temia
         uma acção de longo prazo que não se satisfaz  da cidade, com todos os seus protectorados,  que a presença da esquadra do Egipto fosse
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         com meia dúzia de assaltos a umas quantas  era H āğa’Atā, conhecido dos portugue-  ainda maior desgraça. Queria mantê-los ali,
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                                               –
         naus de mouros; mas, sobretudo, ele traz uma  ses como Cojeatar, escravo eunuco oriundo  sem que se estabelecessem em terra, o que só
         ideia de Lisboa: uma ideia que terá nascido  da região de Bengala, que para ali tinha sido  seria possível com uma grande dissimulação
         em Coulão, em 1503 (Marinha de D. Manuel  levado há vários anos e que se aproximara  e artimanhas sucessivas. Por outro lado, os
         (27)), que se tinha desenvolvido ao longo dos  das mais altas instâncias do poder político  capitães estavam fora dos projectos de Albu-
         anos sequentes e que se alimentara com as  local, manobrando com grande habilidade e  querque, e ouviam todas as notícias (e boatos)
         vitórias na costa de Oman e com informa-  diplomacia. Os habitantes de Ormuz tinham  sobre os perigos que ali iam correr quando
         ções que aí obtivera. É evidente, pois, que a  sido obrigados a pagar um tributo ao Sha Is-  viesse o mau tempo – seriam ameaçados de
         dimensão das suas intenções nada tem a ver  mail da Pérsia, que lhes permitia a vinda das  terra pelos persas, e do mar, pela esquadra
         com a dos seus capitães. Mas é importante  caravanas de camelos com toda a segurança,  egípcia – de forma que a sua vontade era sair
         referir outros elementos deste particular mo-  e a exigência de Afonso de Albuquerque, de  dali e partir para a Índia tão rápido quanto
         mento político-militar do Oceano Índico – e  que deveriam prestar vassalagem a D. Ma-  possível, para levarem a cabo a sua actividade
         especialmente do Golfo Pérsico – para que se  nuel pagando anualmente 15000 xerafins, não  normal. Nunca o capitão colocou a situação
         perceba bem a pressão que se fazia sentir e as  era um tão mau negócio como poderia pa-  em pratos limpos, optando pela dissimulação,
         causas do desespero que originou um grave  recer. As gentes de Ormuz tinham um sen-  pelo adiamento dos requerimentos que lhe
         desaguisado entre Afonso de Albuquerque  tido prático (que os portugueses não enten-  eram dirigidos (talvez não o pudesse fazer
         e os restantes capitães.           deram), achando que se era necessário pagar  sem denunciar que tinha mandato para vir
           Ormuz era um pequeno reino distribuído  ao Sha Ismail para deixar vir as caravanas e  a ser o governador da Índia) e pela violência
         por algumas ilhas e portos estrategicamente  aos portugueses para deixar vir os navios,  inusitada que tornou as incompatibilidades
         colocados de forma a controlar a entrada do  pois assim o fariam. O que não permitiam  irreversíveis. Ninguém entendeu o que ele
         Golfo Pérsico, onde acorriam mercadorias  era a posse física sobre a cidade, nomeada-  queria e sempre viu na sua atitude uma de-
         de Oriente e Ocidente que faziam a fortu-  mente, no que dizia respeito à construção de  sobediência ao regimento d’el rei. No fundo,
         na do poder local, vagamente representado  uma fortaleza.             em 1507, em Ormuz, era óbvia a complexi-
         pela figura de um Sheik que pagava a sua   Em Novembro desse ano, Albuquerque es-  dade da situação política do Índico, e expres-
         própria segurança com páreas a outros so-  creve uma entusiasmada carta ao Vice-Rei,  savam-se as diferentes posições portuguesas
         beranos mais fortes, e com o soldo de uma  contando-lhe da glória com que conquistou  sobre o projecto oriental.
         trupe de mercenários persas, árabes, turcos,  a cidade, e dizendo-lhe que pretende inver-             Z
         abissínios e outros aventureiros que deam-  nar ali, fazendo uma fortaleza e lançando até   J. Semedo de Matos
         bulavam pelo Médio Oriente. Era frequente  campanhas em terra, para obter mais benefí-            CFR FZ
                                                                                       REVISTA DA ARMADA U MAIO 2003  15
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