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Sobre as Guerras Cirúrgicas
Sobre as Guerras Cirúrgicas
m aspecto da guerra do Iraque dia- nistração talibã sem reconhecimento interno ração drástica na maneira de pensar a guerra,
riamente referido foi o dos “danos ou internacional e os membros da Al Qaeda, bem como a rapidez e a dimensão do salto tec-
Ucolaterais” e das vítimas, civis e mi- dispersaram e refugiaram-se nas montanhas, nológico que consentiu ou até sugeriu aquela
litares. É uma questão importante e que é regiões não urbanizadas e sem alvos de valor mudança de atitude perante a guerra.
consequência de uma verdade simples, ain- estratégico identificáveis. Não havia interes- Na Segunda Guerra Mundial eram ordena-
da imperfeita mas revolucionária: se nos bombardeamentos cirúrgicos porque dos bombardeamentos sistemáticos, diários e
A tecnologia permite deixar de exigir o sacrifí- também não se receavam danos colaterais. indiscriminados, a cidades como Londres e
cio da vida. Poderia, quando muito, ser localizada uma Hamburgo, Manchester e Berlim, Coventry e
ou outra caverna nas montanhas, suspeita Dresden, etc.. Aconteceu mesmo que soldados
Tudo começou gradualmente há doze de servir de refúgio aos terroristas. que estavam na frente de batalha recebiam a
anos, na guerra de libertação do Kuwait, com Na guerra do Iraque o objectivo era o derru- notícia da morte de familiares lá bem na reta-
a afirmação de que os Estados guarda, na Pátria que eles jul-
Unidos, face ao extraordinário gavam estar a defender. Este
poder de que dispunham e ao tipo de operações manteve-se
enorme desequilíbrio tecnológi- até à guerra do Vietname, ter-
co favorável que iriam encontrar minada há 29 anos, ou à guer-
no teatro de operações, pode- ra entre o Iraque e o Irão, termi-
riam prometer ao povo ameri- nada em 8 de Agosto de 1988,
cano que derrotariam o inimigo há 15 anos.
sofrendo “zero mortos”. Os referidos novos concei-
Nessa guerra não havia muita tos aplicados à guerra, “zero
preocupação em relação à popu- mortos” e evitar “danos cola-
lação civil, por duas razões fun- terais”, surgiram, o primeiro
damentais: primeiro, porque a há uns doze anos, o segundo
última guerra importante em há quatro anos apenas.
que os Estados Unidos tinham A Guerra do Iraque foi, na
estado envolvidos, a do Vietna- realidade, uma “guerra cirúr-
me, tinha terminado em 1974 e gica”. Esta guerra, que percor-
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então as armas inteligentes ain- reu um país de 438.445 Km
da não tinham tido desenvolvi- (maior que a Alemanha mas
mento significativo; segundo, menor do que a Espanha),
porque se previa que os comba- com uma população de 24,2
tes se desenrolassem quase ex- milhões de habitantes, envol-
clusivamente no deserto e não vendo 659 mil militares mais
em zonas urbanas densamente um número indeterminado de
povoadas. Na verdade, houve milícias armadas, 3.500 blin-
bombardeamentos aéreos maci- dados, 1.050 mísseis, 1.475
ços sobre as grandes formações he li cópteros, 950 aviões, sete
de carros de combate, seguidos grupos de porta-aviões mais
de pequenos avanços terrestres, um número não divulgado de
limitados em consequência das navios, com bombardeamen-
decisões políticas e não em virtu- tos a cidades de milhões de ha-
de da resistência do inimigo, que foi nula. be do regime, atacando o Presidente Saddam bitantes, teve, em relação ao que se poderia
Já na intervenção no Kosovo, uma vez que a Hussein e seus mais directos auxiliares e des- imaginar e ao que guerras anteriores faziam
quase totalidade dos alvos a atingir eram urba- truindo as forças militares que o apoiavam. prever, poucas baixas civis e reduzidíssimos
nos e o contínuo avanço tecnológico aplicado Foram assim definidas duas ordens de objec- “danos colaterais”. E não morreu um único
aos armamentos o permitia, surgiu o conceito tivos operacionais, começando a guerra com “escudo humano”.
de “bombardeamentos cirúrgicos”. A NATO, um ataque cirúrgico a Bagdade, ao local onde Podemos estar certos de que, se o desequi-
para além de insistir na ideia de “zero mortos”, se admitia que poderia estar Saddam e alguns líbrio de forças não for tão acentuado ou se a
em relação às forças próprias, assumiu também dos seus mais próximos colaboradores. progressão das forças no terreno não se fizer
a responsabilidade de procurar zero “danos co- Houve manifestações de grande surpresa por longas estradas asfaltadas através do de-
laterais”, em relação às populações e infra-es- quando se anunciaram os primeiros mortos serto, qualquer outra guerra terá consequên-
truturas civis do adversário. Esta preocupação nas forças da coligações, tal como houve mani- cias bem mais trágicas.
tinha um significado importante, pois pretendia- festações de condenação sempre que se verifica- Mais ainda. Os críticos dos “danos colaterais”
-se mostrar de forma clara que não estava em ram “danos colaterais”. Poderá admitir-se que devem ter em consideração que se as grandes
causa qualquer intenção de ocupação territorial essas atitudes tinham claros objectivos políticos potências como a França, a Alemanha, a Rús-
e também que nada havia contra o povo sérvio, e não constituíam uma genuína surpresa. sia ou a China, se tiverem que envolver num
mas que o objectivo político era afastar do poder Por muito que nos custe, a violência não de- conflito convencional desta gravidade, nenhu-
e levar a tribunal o seu Presidente com a acusa- saparecerá da superfície da terra e, por muitos ma delas, mas nenhuma, terá capacidade para
ção de crimes contra a humanidade. anos, as guerras irão continuar a ter consequên- fazer uma “guerra cirúrgica”.
Na guerra do Afeganistão o problema cias desastrosas, com alguns danos colaterais e Z
voltou a não ser tão determinante, pois os mortos que sempre havemos de lamentar. António Emílio Ferraz Sacchetti
elementos inimigos, os partidários da admi- O que é surpreendente e notável, é a alte- Vice-Almirante
REVISTA DA ARMADA U JUNHO 2003 7