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A MARINHA DE D. MANUEL (38)
Goa: a chave do Índico
Goa: a chave do Índico
e acordo com os documentos exis- conquista como “a primeira tentativa de im- notável, com a possibilidade de serem canali-
tentes, a decisão de avançar para plantação territorial na Índia”, porque o seu zados para norte ou sul. Albuquerque enten-
DGoa, foi tomada por Afonso de papel era o fortalecimento de uma implanta- deu-o?... É evidente que sim. Mas este negó-
Albuquerque a 13 de Fevereiro de 1510, num ção marítima. cio era um negócio do Índico, e a maioria dos
conselho que reuniu os capitães dos navios A cidade está virada para o mar e tem duas portugueses – fossem eles os aventureiros que
duma poderosa esquadra que saíra de vias de comunicação com os impérios conti- iam à Índia ou os financiadores que ficavam
Cochim, com o intuito de entrar no em Lisboa – sonhava apenas com tra-
Mar Vermelho. Não houve unani- zer para Lisboa um bom carregamento
midade nas opiniões, mas impôs-se de especiaria que seria vendida a bom
a vontade do governador que tinha preço, e as influências cimentadas à vol-
dois argumentos imediatos de peso: ta de Cochim nem sequer aceitavam a
em Goa tinham-se refugiado (segun- ideia de transpor para Goa a base de
do informações de Timoja) alguns dos Bijapur E apoio para recolha das esquadras que
navios e homens da esquadra dos rumes S CA vinham da metrópole. Mas é evidente
derrotada por Francisco de Almeida; R o poder adquirido por quem apanha
e o recente falecimento do soberano Pangin Velha Goa P este comércio estratégico, controlando
do Bijapur, tinha levantado graves Rio Mandovi 102 o seu transporte marítimo.
problemas políticos que obrigaram o Ilha de Tiswari A Naquele ano de 1510, quando Hi-
seu filho (o Hidalcão das crónicas por- Rio Zuari Goa dalcão soube da conquista, preparou-
tuguesas) a abandonar a cidade para d -se imediatamente para retomar a ci-
levar a cabo uma campanha militar no dade, cercando-a por terra e sabendo
interior. Timoja era o portador destas o que, enquanto durasse a monção, os
informações e garantia que os habitan- s navios portugueses não poderiam sair
tes se renderiam sem nenhuma luta, para o mar, nem receber qualquer refor-
como aliás veio a acontecer. A 17 de G ço. As forças lusas eram escassas para
Fevereiro (testemunho de Gaspar Vijayanagar enfrentar um contra-ataque de grande
Correia) Albuquerque desembarcou A dimensão (recordemo-nos que se avan-
no cais e ocupou o palácio real, que T çara para Goa, sabendo-se que não ha-
tomou como sua residência. veria resistência), de forma que Albu-
Efectivamente a cidade tinh a as E querque foi obrigado a refugiar-se na
características de uma verda dei ra ca- S fortaleza e a retirar, sob pressão, para
pital: virada para o mar, com acessos os navios acabando por sair a barra de
ao planalto do De c ão – onde o sobera- Oceano Índico Pangim em Agosto. Era a segunda vez
no de Bijapur tinha os seus principais que o Governador abandonava uma
aliados – e protegida de Vijayanagar conquista, rodeado de contrariedades
pela escarpa dos Gates que apenas permitiam nentais da Península Indostânica: o Vijaya- e, mais uma vez, com pouco apoio dos capi-
uma comunicação selectiva (como convinha), nagar a sul e os sultanatos do Decão a norte. tães que comandava.
na parte sul. O palácio do Hidalcão ficava na E esta relação era muito importante, porque Em 10 de Outubro reúne novo conselho em
ilha de Tiswari, limitada pelo rio Mandovi a estes dois potentados viviam em guerra per- Cochim e põe à consideração de todos a execu-
norte e pelo Zuari a sul, permitindo uma de- manente e a subsistência de Goa viria a de- ção de uma nova expedição. As opiniões estão
fesa fácil contra investidas vindas do mar ou pender de uma diplomacia de equilíbrio de divididas de novo, agora com o argumento de
do interior. Para além disto, os terrenos cir- influências, onde desempenhava uma impor- que seria difícil executar a operação e regressar a
cunvizinhos tinham excelentes condições de tância fulcral o negócio de cavalos vindos da tempo de carregar os navios e regressar ao reino.
produção agrícola, garantindo um reabaste- Arábia e da Pérsia. Será que este problema Apesar de tudo Albuquerque decide avançar.
cimento seguro em qualquer época do ano. está presente na mente de Albuquerque, po- Não sabe quem irá com ele, mas lança a amea-
Numa análise apressada e pouco atenta, mui- dendo ter nascido no contacto com as gentes ça velada de que, no dia seguinte de madruga-
tos estudiosos têm interpretado esta conquista de Ormuz?... É uma hipótese que não pode- da, largará para o norte e aguardará por todos
como a primeira tentativa de obtenção de um mos deixar de colocar. ao largo de Goa. A 16 de Outubro, escreveu a
território português no Oriente, dando-lhe um O fornecimento de cavalos aos grandes reinos D. Manuel dizendo-lhe que, com aquela terra
sentido semelhante ao que é dado às conquis- da Península Indostânica é fundamental para [Goa] livre de mouros, garantiria o poder por-
tas guerreiras europeias, com a submissão das entender a estratégia de Afonso de Albuquer- tuguês na Índia, apenas com uma força militar
populações e ocupação de terras, que assim que. Estes animais eram indispensáveis para de quatrocentos homens. Como nos diz Ge-
são somadas a um todo nacional. É um erro a guerra, mas não se reproduzem na Índia e neviève Bouchon, “fez-se à vela com esta es-
que se verifica na análise das circunstâncias da têm de ser sistematicamente importados do perança, que a muitos pareceu uma loucura,
própria conquista, e no que ela veio a represen- Médio Oriente. Constituem, pois, uma mer- mas que se tornou uma realidade por mais de
tar para o poder português no Oriente. Goa é, cadoria estratégica que confere enormes van- quatro séculos”.
sobretudo, um porto de mar e é como tal que tagens económicas e políticas a quem contro- Z
tem de ser encarada, no contexto estratégico lasse o seu tráfico. Passavam por Ormuz ou J. Semedo de Matos
do Oceano Índico. É absurdo interpretar a sua Adem e tinham em Goa uma porta de entrada CFR FZ
REVISTA DA ARMADA U JULHO 2003 11