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HISTÓRIAS DA BOTICA (50)
O erro e o perdão
O erro e o perdão
ntrou com o marido.
Este, antigo oficial da
EForça Aérea, teria ouvi-
do falar de um determinado
cardiologista da Marinha, que
dava consultas na margem Sul
do Tejo. De conhecido em co-
nhecido, lá me trouxe a espo-
sa ao Centro de Medicina Na-
val. Era uma mulher franzina,
que coxeava e, na proximida-
de, pude notar o desvio labial
geralmente associado a quem
teve um Acidente Vascular
Cerebral (...uma trombose,
na linguagem popular). Pare-
cia simpática e, como todas
as mulheres, estava bastante
mais à vontade, do que o seu
marido – que parecia hirto e
sério, numa qualquer parada
militar…
“Em que posso ser-lhes útil?”
– copiei esta frase de um an-
tigo Assistente da Faculdade
de Medicina, quando eu pró-
prio andava no 4º ano e acho,
hoje, tantos anos depois de a
ter ouvido pela primeira vez,
que ainda soa bem. – Define, como poucas, não tivesse havido o suposto atraso, existiria em equipa, porque o grupo e a troca de práti-
a função de um qualquer médico. Lá fora ou- sempre uma hipótese de se formarem os tais cas e atitudes reduzem, percebemos todos, o
via-se o esvoaçar dos pavões do Alfeite, que, trombos…Ela sorriu como se já tivesse ou- erro. Contudo, todos os pacientes devem estar
espertos, haviam percebido que alguém sa- vido esta conversa e acrescentou – “pois é cientes que existirão sempre erros, mas que a
cudia da janela, regularmente, as migalhas doutor, mas então porque não me explicou grande maioria dos procedimentos médicos
do lanche da manhã por volta daquela hora ele (o cirurgião) isso tudo, em vez de dizer foram estudados para minimizar os erros e as
e desde há mais de um ano… A senhora lá que sou muito ignorante para compreen- complicações.
foi contando que tinha um “aperto mitral”. To- der…” – Fiquei sem resposta…Falámos de- Mesmo admitindo que alguns erros possam
mava um medicamento que tornava o sangue pois sobre pormenores técnicos e fiz o possí- ter acontecido por uma prática menos cuida-
menos propenso à coagulação e à formação vel para ajustar a coagulação da senhora, e, dosa do médico, os pacientes estão, nas mais
de trombos (um dos riscos daquela doença com muitas recomendações de “melhoras”, das vezes, dispostos a perdoar, mas exigem
valvular do coração). Entretanto, precisou de lá a deixei partir… uma atitude humilde por parte do médico. As
ser operada por uma doença aguda, que im- Mais tarde percebi porque me calei. Tam- atitudes sobranceiras destes doutores T, não
plicou a extracção da vesícula biliar… bém eu há muitos anos, já médico, confiei são desculpáveis, nem aliviam o sofrimento
Como será facilmente compreensível, foi num cirurgião desconhecido, que por descri- psicológico do paciente. Em termos simples,
preciso suspender, temporariamente, o tal ção vou chamar doutor T. Confiei cegamente o erro é uma fonte, comum, de sofrimento e
produto que impede a coagulação, pois o ris- como o devem fazer todos os doentes. A pe- o perdão a pomada, que não curando alivia. É
co hemorrágico seria elevado. No pós-ope- quena – cirurgia correu mal, deixando marcas de extrema importância, estou seguro, para os
ratório – dizia a senhora – teria existido, por irreversíveis para a vida – em grande medida pacientes sentir proximidade e empatia com
parte do hospital civil em que foi operada, um piores que a entidade original. Quando ga- o seu médico – em particular se os tratamen-
atraso, para além do razoável, no recomeço nhei coragem e já com provas para lhe pedir tos não correrem como previsto. Nessa qua-
da terapêutica. Este atraso teria permitido a ajuda, uma vez que as coisas tinham corri- lidade, a de paciente, nunca mais olhei para
formação de um trombo no seu coração, que do mal, sorriu trocista, avisando que a culpa o doutor T na mesma maneira. Arrumei-o
deu origem ao acidente vascular cerebral, que não podia ter sido dele, troçando da opinião naquela prateleira, feia e triste, onde guardo
agora a afligia. Procurava-me não para que de outros médicos e, sem a mínima explica- os monstros reais – ainda que muitas vezes
se aliviassem as consequências deste nefasto ção, altivo, descartou todas as suas respon- se apresentem sorridentes e bem dispostos
evento na sua vida – sabia que isso era im- sabilidades… – que encontrei na vida. Lamento, por mim
possível – mas para uma ajuda no controle da Ora o erro em Medicina é das maiores per- e por todos aqueles (muitos no nosso país),
coagulação. Culpava, lá no íntimo, o cirurgião plexidades a que o ser humano está sujeito. que viram negadas as explicações a que jus-
da vesícula pelo ocorrido. Errar, aliás, é humano e deve ser aceite que tamente tinham direito.
Defendi o médico desconhecido com con- os médicos também são pessoas e sujeitos Tornei-me desconfiado. Sempre que al-
vicção. Expliquei que a suspensão do me- a erro. – Na verdade, esta é uma das razões gum dos meus doentes precisa de ser ope-
dicamento era necessária, que mesmo que porque a medicina deve ser sempre exercida rado referencio para cirurgiões que reconhe-
30 MARÇO 2007 U REVISTA DA ARMADA