Page 104 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (50)



                                  O erro e o perdão
                                  O erro e o perdão

             ntrou com o marido.
             Este, antigo oficial da
         EForça Aérea, teria ouvi-
         do falar de um determinado
         cardiologista da Marinha, que
         dava consultas na margem Sul
         do Tejo. De conhecido em co-
         nhecido, lá me trouxe a espo-
         sa ao Centro de Medicina Na-
         val. Era uma mulher franzina,
         que coxeava e, na proximida-
         de, pude notar o desvio labial
         geralmente associado a quem
         teve um Acidente Vascular
         Cerebral (...uma trombose,
         na linguagem popular). Pare-
         cia simpática e, como todas
         as mulheres, estava bastante
         mais à vontade, do que o seu
         marido – que parecia hirto e
         sério, numa qualquer parada
         militar…
           “Em que posso ser-lhes útil?”
         – copiei esta frase de um an-
         tigo Assistente da Faculdade
         de Medicina, quando eu pró-
         prio andava no 4º ano e acho,
         hoje, tantos anos depois de a
         ter ouvido pela primeira vez,
         que ainda soa bem. – Define, como poucas,  não tivesse havido o suposto atraso, existiria  em equipa, porque o grupo e a troca de práti-
         a função de um qualquer médico. Lá fora ou-  sempre uma hipótese de se formarem os tais  cas e atitudes reduzem, percebemos todos, o
         via-se o esvoaçar dos pavões do Alfeite, que,  trombos…Ela sorriu como se já tivesse ou-  erro. Contudo, todos os pacientes devem estar
         espertos, haviam percebido que alguém sa-  vido esta conversa e acrescentou – “pois é  cientes que existirão sempre erros, mas que a
         cudia da janela, regularmente, as migalhas  doutor, mas então porque não me explicou  grande maioria dos procedimentos médicos
         do lanche da manhã por volta daquela hora  ele (o cirurgião) isso tudo, em vez de dizer  foram estudados para minimizar os erros e as
         e desde há mais de um ano… A senhora lá  que sou muito ignorante para compreen-  complicações.
         foi contando que tinha um “aperto mitral”. To-  der…” – Fiquei sem resposta…Falámos de-  Mesmo admitindo que alguns erros possam
         mava um medicamento que tornava o sangue  pois sobre pormenores técnicos e fiz o possí-  ter acontecido por uma prática menos cuida-
         menos propenso à coagulação e à formação  vel para ajustar a coagulação da senhora, e,  dosa do médico, os pacientes estão, nas mais
         de trombos (um dos riscos daquela doença  com muitas recomendações de “melhoras”,  das vezes, dispostos a perdoar, mas exigem
         valvular do coração). Entretanto, precisou de  lá a deixei partir…    uma atitude humilde por parte do médico. As
         ser operada por uma doença aguda, que im-  Mais tarde percebi porque me calei. Tam-  atitudes sobranceiras destes doutores T, não
         plicou a extracção da vesícula biliar…   bém eu há muitos anos, já médico, confiei  são desculpáveis, nem aliviam o sofrimento
           Como será facilmente compreensível, foi  num cirurgião desconhecido, que por descri-  psicológico do paciente. Em termos simples,
         preciso suspender, temporariamente, o tal  ção vou chamar doutor T. Confiei cegamente  o erro é uma fonte, comum, de sofrimento e
         produto que impede a coagulação, pois o ris-  como o devem fazer todos os doentes. A pe-  o perdão a pomada, que não curando alivia. É
         co hemorrágico seria elevado. No pós-ope-  quena – cirurgia correu mal, deixando marcas  de extrema importância, estou seguro, para os
         ratório – dizia a senhora – teria existido, por  irreversíveis para a vida – em grande medida  pacientes sentir proximidade e empatia com
         parte do hospital civil em que foi operada, um  piores que a entidade original. Quando ga-  o seu médico – em particular se os tratamen-
         atraso, para além do razoável, no recomeço  nhei coragem e já com provas para lhe pedir  tos não correrem como previsto. Nessa qua-
         da terapêutica. Este atraso teria permitido a  ajuda, uma vez que as coisas tinham corri-  lidade, a de paciente, nunca mais olhei para
         formação de um trombo no seu coração, que  do mal, sorriu trocista, avisando que a culpa  o doutor T na mesma maneira. Arrumei-o
         deu origem ao acidente vascular cerebral, que  não podia ter sido dele, troçando da opinião  naquela prateleira, feia e triste, onde guardo
         agora a afligia. Procurava-me não para que  de outros médicos e, sem a mínima explica-  os monstros reais – ainda que muitas vezes
         se aliviassem as consequências deste nefasto  ção, altivo, descartou todas as suas respon-  se apresentem sorridentes e bem dispostos
         evento na sua vida – sabia que isso era im-  sabilidades…             – que encontrei na vida. Lamento, por mim
         possível – mas para uma ajuda no controle da   Ora o erro em Medicina é das maiores per-  e por todos aqueles (muitos no nosso país),
         coagulação. Culpava, lá no íntimo, o cirurgião  plexidades a que o ser humano está sujeito.  que viram negadas as explicações a que jus-
         da vesícula pelo ocorrido.         Errar, aliás, é humano e deve ser aceite que  tamente tinham direito.
           Defendi o médico desconhecido com con-  os médicos também são pessoas e sujeitos   Tornei-me desconfiado. Sempre que al-
         vicção. Expliquei que a suspensão do me-  a erro. – Na verdade, esta é uma das razões  gum dos meus doentes precisa de ser ope-
         dicamento era necessária, que mesmo que  porque a medicina deve ser sempre exercida  rado referencio para cirurgiões que reconhe-

         30  MARÇO 2007 U REVISTA DA ARMADA
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