Page 134 - Revista da Armada
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ficou entupido e disse que o melhor era ir ao do ladeada por dois altos promontórios, não Hoje, ao recordar este episódio que tanto
Comandante, CTEN Garcia Braga. Assim fi- permitia que o navio fosse visto do rio. significou para mim, penso que deve ter sido
zemos e, para minha ainda maior aflição ele Durante o percurso os meus pensamen- uma hora de, talvez, quinze segundos...
diz-me: “Oh Conceição Silva como é que isso tos não eram já, talvez, de total liquidação da Após essa interminável demora, voltou-
é possível? O Cristiano tinha alguma coisa carreira mas, nem por isso, deixavam de estar -se lentamente, olhando-me bem nos olhos,
contra si?” “Eu acho que não, Sr. Comandante, carregados de intensas nuvens negras... Pro- e, após mais uns longos segundos que me
mas já não sei...” “É que a sua situação é muito cedimento tão irresponsável tinha, por força, convenceram do desastre iminente, com um
grave! Como é que o Cristiano faz uma coisa que ter graves consequências. Ao acostarmos sorriso inquiriu: “oh Conceição Silva você
destas? tem a certeza que o navio não está á sua ao navio, o Gualdino, debruçado à amurada percebeu?” “sim senhor Sr. Comandante,
espera? Oh Almeida e Costa diga ao patrão do pergunta-me: “ oh Conceição Silva você, “ao percebi e nunca mais me esquerei!” E nunca
nosso escaler que leve o tenente Con- me esqueci, ao longo da minha vida,
ceição Silva rio abaixo que o Faial deve de como um autêntico Comandante,
estar a pairar perto da foz”. de elevada estatura moral e humana,
Assim se fez. Navegámos uma boa pode dar uma verdadeira lição a um
meia hora até á foz. Nada! “patrão inexperiente subordinado que pisou
vamos embora...” Mais meia hora o risco, com elegância, sem o humi-
de pensamentos negros durante o lhar e, porque não, até com uma boa
regresso.Volto ao Comandante e in- pitada de humor! Era assim o 1TEN
formo-o da triste realidade. Ele afi- Manuel António Pereira Cristiano de
vela uma máscara que não deixava Sousa de quem, com saudade, guar-
dúvidas a ninguém e manda chamar do tão boas recordações...
o Telmo, oficial de comunicações, Nunca cheguei a saber se a men-
a quem diz: “faça uma mensagem sagem para o E.M.A. seguiu ou foi
para o Estado-Maior da Armada in- cancelada...
formando que o 2TEN Conceição Sil- O nosso regresso ao Continente
va faltou ao embarque no seu navio” reservava-nos, ainda, uma surpre-
etc.,etc. E repetiu para mim “Não sei Karachi - ”Faial” em doca. sa, que, fazendo parte da vida do
o que é que isto vai dar mas de bom é que menos”, trouxe as luvas e as defensas?” “trou- mar, nunca é recebida com alegria. De fac-
não é de certeza! Vá para cima e almoce que xe, trouxe” respondi eu, atirando-as para to, depois de termos escalado Aden que era
já está na hora” cima. Lá subi a escada de quebra-costas e, já o paraíso das máquinas fotográficas e dos
Da camarinha do Comandante até á câma- dentro do navio, ele diz-me que o Comandan- “radiogram s” da altura (onde adquirira a mi-
ra do navio, onde o almoço já começara, tive te estava à minha espera na ponte alta. Pre- nha Leica M3 por metade do preço de Lisboa),
tempo para pensar em definitivo: “pronto, vendo o pior, ainda perguntei pelo Moreira, seguido de Port Said, entrámos no Mediter-
aqui terminou a minha carreira de oficial de sempre era um auxílio mais próximo... “está râneo, escalando Malta, sem qualquer novi-
Marinha!” no camarote e nem o quer ver!” dade. Entretanto, a partir daí, o tempo foi-se
Já na câmara, todos os meus camaradas A adrenalina deu mais um salto, ajudada deteriorando e um forte temporal começou
me tentavam consolar: Leal Coelho, Telmo ainda, pelo completo silencio dos elementos a abater-se sobre o navio. Recordo o valente
e Preto, iam-me dizendo “eh pá eu empresto- da guarnição que, à medida que eu ia pas- Faial a caturrar, com cada vez mais violência,
-te uma farda, eu empresto-te dinheiro, alojas sando no convés, me olhavam como quem até parecer um submarino a descer a cava da
no meu camarote, não há de ser nada...(ai não olha um cordeiro a caminho do matadouro. onda e a enfiar quasi por inteiro na onda se-
que não é!) e amanhã, claro, entras de serviço, O trajecto para a ponte foi penoso e a subida guinte. O panorama estava a tornar-se som-
dizia o 1TEN Silva Horta, imediato brio e o Comandante decidiu arribar
do navio. Todas estas ajudas psico- à Argélia para evitar qualquer dissa-
lógicas não conseguiam, entretanto, bor. Há males que vêm por bem...
amenizar o meu desastroso estado de Mal sabíamos nós que, durante a
espírito que só conseguia pensar no nossa estadia nessa ex-colónia Fran-
pior. Não tinha o Comandante refe- cesa, seríamos testemunho (pelas
rido a gravidade da situação? E, foi notícias) do primeiro acto terrorista
no meio de uma refeição de cujo con- nela praticado.
teúdo nem me consigo lembrar que, Um conhecido médico fora à pes-
de repente, surgiu um raio de luz! O ca, para local ermo, e fora atacado,
Almeida e Costa aparece na câmara tendo levado uma facada no pes-
e exclama: “oh rôlhas o escaler do teu coço. Conseguiu, ainda, chegar ao
navio está ali atracado ao cais!” “Esta carro e conduzir até ao hospital, mas
agora!” pensei eu, mas, ainda antes acabou por morrer por ter perdido
do pensamento terminado, já eu dis- muito sangue. Este era o prelúdio
parara, portaló fora, carregado com do que viria a seguir e que todos
as imbambas que tanto sofrimento já Segundos-Tenentes Conceição Silva e Cristovão Moreira em Malta. conhecemos.
tinham causado! pela escada de quebra-costas até à ponte alta A nossa viagem terminou, pouco depois,
É claro que, após o patrão do escaler me ter foi o sacrifício final. Chegado lá acima perfilei- em Lisboa, sem mais incidentes. Como nor-
explicado o que acontecera, caí em mim e per- -me, em rígido sentido e, sem desfazer a con- malmente acontecia nessa época, cada um foi
cebi, bem, toda a irresponsabilidade da minha tinência, perguntei: “o Senhor Comandante destacado para outras funções, terminando
actuação. O comandante tinha definido, com dá licença?” O Comandante Cristiano que, aqui um período intenso da minha vida de
as autoridades portuárias, que a saída seria ás debruçado na amurada, olhava o horizonte marinheiro de que guardo tantas saudades,
dez horas em ponto. Não querendo alterar o à proa do navio, de costas para o moralmente como boas recordações.
que fora acordado, embora tivesse confirma- esfarrapado e ínfimo 2TEN, não respondeu e Z
do a recepção da minha mensagem, resolveu assim se manteve durante um espaço de tem- Tomás George Conceição Silva
partir mesmo áquela hora, ficando a pairar, po (de meu intenso sofrimento), que me pa- GENERAL PILAV
não na foz do rio, mas fora da barra. Esta, sen- receu ser de uma hora, pelo menos. Fotos do autor
24 ABRIL 2007 U REVISTA DA ARMADA