Page 32 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (49)
Os Atletas de Fundo do Alfeite
Os Atletas de Fundo do Alfeite
pacientes, às condições de
trabalho do local (por vezes
péssimas) e, em particular,
ao reconhecimento devido
a qualquer ser humano pelo
trabalho efectuado, muitas ve-
zes inexistente nas instituições
públicas. Não me admirei de
todo, portanto, que nos servi-
ços de urgência se sentissem
pouco acarinhados…
Continuámos e espero que
continuemos a correr jun-
tos… A cada corrida fortale-
cemos o corpo e como este
não vive sem alma, esta cer-
tamente também cresce. Dos
“centros da minha própria
existência, donde nascem as
ânsias…a infinita essência”,
como diz o poeta castelhano
acima, decidi escrever sobre
eles porque me impressiona-
ram pela dignidade com que
envelhecem, pela pujança fí-
sica que demonstram e pelo
carácter moral que a acompa-
Te escribo desde los centros me conhece bem – está sempre comigo. Fala- nha. Exemplos – já raros – de quem completará
De mi própria existencia mos enquanto a corrida acontece e corremos o ciclo da vida com força, honra e orgulho…
Donde nacen las ânsias. muito – não vá o leitor pensar que estes dois De onde nascem as minhas ânsias, ainda, lhes
La infinita essência… atletas de fundo se passeiam vagarosamente e agradeço a companhia, sempre alegre e jovial,
se deixariam atrasar por mim. São, e sinto que que a tempos nos liberta da solidão feroz e do
Alejandro Sainz, Quando Nadie Me Ve
continuarão a ser, grandes e esforçados atletas, desencanto – frutos dolorosos de guerras pas-
oltei a correr. Todos os dias na hora do como reconhecerão todos os que, como eu, sadas e batalhas presentes.
almoço. Para mim, é um dos grandes os conhecem…Falamos das notícias do dia, E a pista de atletismo está lá, cheia do verde
Vprazeres da vida, o outro é a escrita. São dos factos do passado, das esperanças para o do Alfeite, do vento nos eucaliptos (seres gi-
prazeres solitários, íntimos e muito pessoais. futuro, sempre numa perspectiva lúcida e de gantes, sentinelas de um outro tempo), entre-
Os dois têm em comum um objectivo, um fito uma limpeza de alma que não cessa de me cortada pelas sirenes dos navios, aberta a todos
meritório – o esquecimento do eu. O esqueci- surpreender. que queiram partilhar da liberdade que o suor
mento, longe dos medos, das afrontas e das lu- Durante muito tempo, não lhes disse quem físico fornece e que a vitória sobre o “eu” ínti-
tas do dia a dia. O esquecimento é, sei-o bem, era. Acreditei que o posto, ou pura simples- mo complementa…Ser atleta de fundo é, com-
outro nome para a paz. Ora aconteceu, que na mente a medicina aumentassem a distância preendi finalmente através destes dois amigos,
pista do Centro de Educação Física da Armada entre nós – o que diminuiria a espontaneida- muito mais que correr durante muito tempo e
(CEFA), antes vazia de amigos, encontrei dois de, que eu tanto aprecio. Contudo, um dia percorrer longas distâncias. É, acima de tudo,
jovens, na casa dos 70 anos, que também cor- cruzei-me com um dos meus pacientes, em negar aos sofrimentos da vida a última palavra.
rem todos os dias e desde há muito… plena pista. Aí, encurralado, contei-lhes quem É esquecer palavras como “velho” e “doente”. É
Começámos pela simples camaradagem des- sou. Nesse dia houve silêncio no resto da cor- ter a força para troçar do medo e da incerteza,
portiva. Um comentário aqui, outro ali. Íamos rida. E eu, quando após um banho rápido, me que são parte da vida de todos nós…
conversando durante a monotonia das voltas apresentei no tempo limite da última mesa Gostaria, gostaria muito, de conhecer a face
ao circuito. Um deles, antigo Sargento da Ma- da messe da Base Naval, para almoço (sujei- destes atletas de fundo navais, quando lerem
rinha, foi-me contando retalhos da sua própria to aos olhares de censura do Sr. Dispenseiro, estas palavras. Peço-lhes que me desculpem
vida – onde navegou, que cursos fez e o amor que, fiscalizador, ia fechar a porta), pensei que por lhes revelar o coração. Espero que com-
que tinha ao desporto em geral e à corrida em se iriam afastar… preendam que, no fundo, eu só acrescentei al-
particular. O outro, antigo operário do Arsenal Mas não. Não se afastaram. Passaram a tra- guma profundidade ao acto de coragem que
do Alfeite, conta-me a verdade do seu tempo. tar-me com um ainda maior cuidado. O que cada um representa – e que, de forma livre e
Um tempo em que “se vinha de bicicleta para fizeram, foi a falar-me das suas aventuras e poética, se pode resumir em “Correr para Vi-
o Alfeite”, o mundo parecia fazer sentido e o desventuras médicas. Contaram-me das suas ver”, em vez do habitual “Viver a Correr”, que
ar era puro… mazelas e das mazelas dos seus familiares. caracteriza o nosso mundo actual e que, do
Há medida que os meses foram passando, Dos médicos que os atendiam bem e dos mé- fundo da alma, abomino…
passei a procurá-los activamente. Sinto a sua dicos das urgências, menos disponíveis. - Não Bem hajam por existirem.
companhia com grande agradabilidade e um lhes menti, também eu tenho apenas uma ca- Z
alívio para a solidão de alma, que – sabe quem pacidade de sorrir proporcional ao número de Doc
30 JANEIRO 2007 U REVISTA DA ARMADA