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A MARINHA NA 1ª FASE DA GUERRA EM ANGOLA
           A MARINHA NA 1ª FASE DA GUERRA EM ANGOLA

         RECORDAR O PASSADO                 de utilizar uma fonte idónea e fiável, e con-  independentemente do desfecho que viesse a
                                            victo de que o seu Autor me permitiria citá-lo  ter, nunca poderia prolongar-se por muito tem-
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              onvidado pela Revista da Armada a  desta forma .                 po: uma semana ou duas, no máximo, e tudo
              recordar aqui alguns aspectos  da in-  A primeira fase da Guerra coincide, pratica-  estaria necessariamente resolvido.  6
         Ctervenção  da  Marinha em Angola nos  mente, com a da estadia em Angola da fragata   À chegada a S. Vicente soube-se que, não
         primeiros meses de 1961, tive de início sérias  “Nuno Tristão” , que aí permaneceu de Feve-  obstante estar terminada a operação Santa
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         dúvidas em aceitar a honrosa incumbência:  reiro a Agosto de 1961. Limito-me portanto a  Maria, a “Nuno Tristão” não iria regressar a
         para quem já anda perto dos oitenta. Recor-  esse período, para recordar alguns dos acon-  Lisboa, mas seguir para Luanda, onde entre-
         dar factos ocorridos há mais de quarenta anos  tecimentos que testemunhei ou de que tive co-  tanto  haviam ocorrido graves  acontecimentos
         não é tarefa fácil.                nhecimento directo. Quanto àqueles a que não  na noite de 3 para 4 de Fevereiro.
           É certo que o rigor da memória va-                                          Navegando à maior velocidade
         ria na razão inversa do número de                                           possível, a “Nuno Tristão” chegou a
         anos que já passaram sobre uma ocor-                                        Luanda a 14 de Fevereiro, e atracou
         rência; mas os velhos tendem sempre                                         ao Cais Comercial.
         a sobrevalorizar pormenores, a privi-                                         Mexia Salema, como testemunha
         legiar as suas convicções e a posicio-                                      presencial daqueles acontecimentos,
         nar-se no centro do Mundo, interpre-                                        descreve-os na obra citada nos termos
         tando tudo segundo uma perspectiva                                          seguintes: “Às 2 e 30 horas da noite de 3
         pessoalíssima, casmurra e teimosa,                                          para 4 de Fevereiro (sexta-feira), ouviram-
         alheia ao decurso do tempo e inalte-                                        -se os primeiros tiros na pacata cidade de
         rável até perante a evidência das coi-                                      Luanda. Bandos de assaltantes, na maioria
         sas novas, caso estas não confirmem a                                        jovens delinquentes, muitos deles naturais
         “sua verdade”.                                                              de Catete, vestindo unicamente calções, e
           De qualquer modo, e mesmo ape-                                            com o tronco nu e engordurado como de-
         sar destes perigos, pensei que devia                                        fesa para a luta corpo-a-corpo, drogados e
         aceitar e deixar aqui registado aquilo                                      dementes e gritando furiosamente «mata,
         que vi, ou de que tive conhecimento   Mapa do Norte de Angola.              mata, Angola é nossa», lançavam-se ao as-
         directo, pois creio que chegará o dia em que os  assisti socorro-me da obra atrás citada, convic-  salto com catanas e algumas armas antigas. Um dos
         historiadores, que se nutrem de factos, preten-  to da sua veracidade pelo muito respeito que  grupos penetrou na esquadra da Companhia Móvel
         derão saber o que realmente se passou. Nesse  me merece a fonte que os refere.   da Polícia de Segurança Pública, produzindo baixas,
         dia, os depoimentos de quem viveu ou assistiu   O SANTA MARIA         entre as quais a sentinela que, apanhada de surpresa,
         a alguns dos acontecimentos poderá talvez ser                         foi morta sem sequer ter tido tempo para se defender.
         mais útil, como fonte histórica, do que a “ver-  O episódio do Santa Maria está descrito em  Outro grupo, atacou a Casa da Reclusão Militar,
         dade oficial” transmitida pelos comunicados  inúmeras publicações, e dispensa comentários.  matando uma das praças da guarda que, apesar do
         e pelas noticias dos jornais da época.  A referência que aqui lhe é feita tem apenas  seu reduzidíssimo número, conseguiu resistir, evi-
            A guerra em Angola desenvolveu-se ao lon-  uma razão de ser: evidenciar o caracter de ur-  tando que fosse libertado qualquer preso. Ainda um
         go de três fases, completamente distintas no  gência máxima, improviso e “desenrascanço”  terceiro, tentou assaltar a cadeia de S. Paulo, mas
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         que respeita às características específicas de  com que foram “preparados” os navios  que   sem qualquer resultado. Finalmente, um carro pa-
         cada uma. Dessas três fases, apenas me pos-  integraram a força naval destinada a capturar  trulha da PSP atraído a uma cilada, sofreu o assassí-
         so referir à primeira, simbolicamente iniciado  aquele paquete, ou a impedi-lo de demandar  nio de todos os seus ocupantes. E dado o imprevisto
         pelo assalto ao paquete Santa Maria, em 24 de  algum porto  da costa de África, como se che-  e a rapidez dos ataques, os assaltantes poucas baixas
         Janeiro de 1961 e, também simbolicamente,  gou a pensar que iria fazer.  sofreram. (Obra citada p. 48).
         terminada com a tomada de Nambuangongo   A “NunoTristão” (Cte. Almeida Graça) es-
         pelo batalhão do Ten. Coronel Maçanita, em 9  tava em doca seca, para grandes reparações.  LUANDA, FEVEREIRO DE 1961
         de Agosto do mesmo ano.            Veio, hélice e diversos equipamentos esta-  Quando a “Nuno Tristão” chegou, o am-
           A luta prolongou-se ainda por mais                                        biente na cidade era de grande ner-
         treze anos, pormenorizadamente  des-                                        vosismo e receio, pois se esperavam
         critos em diversas obras ; algumas                                          novos ataques a qualquer momento. A
         delas referem-se ao papel desempe-                                          insurreição na Baixa de Cassange  ha-
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         nhado pela Marinha nessa fase pos-                                          via absorvido quase todas as unida des
         terior do conflito, com natural e justa                                      que a Região Militar possuía em Luan-
         referência à actuação dos Fuzileiros                                        da, pelo que a cidade não dispunha de
         Navais. Mas pouco se tem dito sobre                                         meios militares adequados à sua de-
         o seu papel durante a primeira fase, o                                      fesa, caso os ataques se repetissem; a
         que deixa em aberto uma lacuna rela-                                        pouca Aviação disponível colaborava
         tiva ao período que vai de Fevereiro a                                      na campanha do Cassange, e a Mari-
         Agosto de 1961. No entanto, o que se                                        nha só contava com  uma fragata  e
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         fez nesse período teve alguma impor-  O NRP “Nuno Tristão”.                 de dois patrulhas , para prestar assis-
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         tância para o futuro, como se verá.  vam desmontados, e o pessoal reduzido ao  tência não só a Luanda como também às vilas
           Como quási única excepção ao silêncio que  mínimo. Com a maior pressa se montou tudo  e povoações espalhadas ao longo de cerca de
         obscurece esse período, cito um livro da au-  de novo, completando-se a guarnição, à custa  800 milhas da zona costeira ou nas margens de
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         toria do Almirante Mexia Salema  : “NEM A  de  outros navios que ficavam na Base Naval  rios de grande extensão, como o Zaire.
         PÁTRIA SABE”. Nele me apoio para rectifi-  do Alfeite.  5                A “Pacheco Pereira” seguiu a 10 de Feve-
         car lapsos de memória, conferir pormenores e   Foi nesta condições que em curtíssimo prazo  reiro para um cruzeiro no Sul, pelo que, se
         transcrever alguns trechos mais significativos  o navio largou para o mar, para uma comissão  organizou na “NunoTristão” uma “força de
         e esclarecedores. Faço-o com a grata certeza  que se previa curta, pois o caso do Santa Maria,  desembarque” para render a daquele navio;

         10  JANEIRO 2008 U REVISTA DA ARMADA
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