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HISTÓRIAS DA BOTICA (58)
A crise... e um marinheiro
A crise... e um marinheiro
dos mais capazes...
dos mais capazes...
“A
crise é generalizada...”, ou a
“crise está instalada...” ouve-se
amiúde nos nossos noticiários
televisos. A “crise” é toda-poderosa e tem
muitas faces: temos a crise provocada pela
derrapagem das contas públicas, a crise da
subida do petróleo, as crises da Saúde, as
crises da Justiça, a crise da Educação, etc.
Portugal, reflicta o leitor comigo, é defini-
tivamente o país das crises...Esta sina na-
cional tem consequências também a nível
da saúde pessoal. É fácil perceber porquê:
interfere nas relações pessoais e familia-
res, pela negatividade que transmite. Es-
timula, por fim, um ambiente típico ao
endeusamento de alguns, que na guerra
do “salve-se quem puder” tão caracterís-
tica do ideário popular, atingem dinheiro
e honrarias públicas à custa de esquemas
pouco lícitos, poucas vezes criticados, e
menos ainda punidos, nesta política do
facto consumado em que dinheiro é po-
der e a ostentação é desejável...
Não são essas crises que aqui me interes-
sam, mas daquelas no interior de cada um de ções agudas, havia recorrido muitas vezes “dos mais capazes”...apresentava-se sempre
nós. A crise pode ser um modo de crescer, um ao Serviço de Urgência. Do ponto de vista a sorrir, sempre optimista. Soube, por outro
modo de sobreviver. Ser médico é conhecer médico, a situação não parecia perdida, mas médico, que preferiu ficar ao Serviço, apesar
intimamente a crise que a doença – principal- ainda estava longe de passar o Cabo da Boa da sua situação clínica permitir claramente a
mente quando é súbita e inesperada - acarreta. Esperança, que garante a vida...Daí a tristeza dispensa, almejada por muitos outros...
Nesta fase, e após tão dramática introdução, que se sentia na sua alma. Desejei-lhe senti- Meditei sobre tudo isto (porque sempre que
entra em cena o nosso marinheiro...”dos mais das melhoras... vejo uma acção extraordinária, ela vive comi-
capazes”... Cruzei-me com ele no corredor Noutro dia, não muito distante, procurou- go até chegar a uma compreensão profunda,
da Urgência do Hospital de São Francisco Xa- -me no Alfeite. Precisava de um ecocardiogra- que implica paz...). As crises têm, como sabe-
vier. Primeiro, era só uma cara conhecida (sou ma. Parecia outro, mantinha a cor macilenta, mos todos, muitas leituras, felizmente existe
bom em caras mas péssimo em nomes e pior mas a sua alma estava do azul madrepérola de facto um antídoto dos “mais capazes”... é
em contextos...), ficou tudo claro quando ele, das águas Açoreanas. Enquanto lhe fiz o exa- o humor. Alguns são abençoados com esse
sentindo o esforço de memória que me ia na me, que era normal, contou várias anedotas dom...de exibirem, naturalmente, graça...O
mente, adiantou um... de bom gosto, daquelas que são típicas da Sr. Cabo era um destes brilhantes exemplos.
-Como vai o Sr. Doutor! Sou Cabo Manobra, marujada e alegram a alma por dentro. Afir- Não é em vão que os portugueses a par da
estive embarcado consigo em 1991, lembra-se, mou, entre outras coisas, que a FIFA, o orgão melancolia que nos caracteriza, apresenta-
no João Roby? máximo do futebol, tinha criado uma meda- rem um humor lendário e uma capacidade
Lá achei o contexto do (então) Marinheiro lha, uma distinção particular para os dirigen- extradordinária para rir de si próprios...Tal-
folgazão, das Comissões nos Açores, sempre tes do futebol português, seria de prata (que vez, precisamente porque temos uma histó-
bem-disposto e pronto a ajudar os outros. Ti- é tom límpido) e chamar-se-ia: “A Ordem ria permeada de crises (ou será uma contínua
nha agora mau aspecto. Estava pálido e maci- de Dona Carolina” - que evidentemente se- crise), seja esta uma das características dos
lento. Só o olhar guardava uma réstia do brilho ria prémio para a limpidez de alma, a resis- nosso genes...
de antigamente. Disse-me que tinha anemia, tência à corrupção e a conduta honesta pela Pareceu-me ainda, de forma clara, que este
aguardava atendimento…Perguntei-lhe se pre- qual são, justamente, conhecidos os nossos marinheiro usava esta sua arte para se defender
cisava de ajuda? dirigentes desportivos...Transmitia estas ideias da mágoa profunda, que a sua doença certa-
-Não já me conhecem e eu já conheço o ca- com uma certeza e uma sobriedade, que as mente acarretava. Neste sentido, pareceu-me
minho…Respondeu ele com um certo tom de tornava extremamente divertidas, capazes de esta atitude um acto de grande coragem, me-
triste aceitação, que os médicos bem conhe- rivalizar com o mais bem pago comediante recedora, esta sim, de uma qualquer meda-
cem...Entretanto tive que sair dali, alguém me televiso...Não falámos sequer da doença dele, lha. Percebi então que sou um homem feliz,
chamou. Fui atender alguém, mais um enfarte. mas sim dos “outros tempos” , em que ambos por ter conhecido um marinheiro dos mais
Voltei quando pude, ele não estava lá. Estava erámos mais novos e das aventuras e desven- capazes...capaz mesmo de dar cor à loucu-
noutro corredor, fazia uma transfusão... turas das viagens. ra de acreditar, que haverá sempre futuro. Sei
Procurei, discretamente, o processo clíni- Voltei a vê-lo, desde então, muito mais que existem muitos outros, assim, na Marinha,
co. Uma rápida leitura e percebi. O Sr. Cabo vezes. Sempre alegrou o meu dia. Este mari- provavelmente porque a vida do mar é dura e
tinha uma forma de Leucémia, e, em situa- nheiro que os seus camaradas apelidam como mal compreendida.
30 AGOSTO 2008 U REVISTA DA ARMADA