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HISTÓRIAS DA BOTICA (62)



                       A verdadeira generosidade
                       A verdadeira generosidade

               á medida que os anos vão passando e a  ca insuficiência renal. Trata-se de uma situação  compra de rins, em paises empobrecidos do
               experiência vai crescendo, impressiona-  em que os rins, os principais orgãos reponsáveis  mundo pobre...
         H mo-nos menos. Como médicos vamos  pela eliminação de resíduos, que podem agredir   Ora o marinheiro desta história terá sido, aos
         conhecendo toda a espécie de sofrimentos e  o organismo entram em falência. Os rins asse-  poucos, confrontado com as soluções, que – de
         muitas das atitudes, boas e más que acompa-  guram a homeostase (o equílibrio) do corpo hu-  forma simples – atrás explícitei. Imaginará facil-
         nham o sofrimento. Neste sentido, já observei   mano e não podemos viver sem o seu funciona-  mente, neste contexto, o leitor o sofrimento a
         muitas atitudes genuinamente generosas em  mento adequado. Sendo assim, para sobreviver  que terá sido sujeito. Fiquei, contudo, surpreso
         relação a quem sofre. Vi mães que não aban-  é necesssário recorrer a técnicas substitutivas do  com a solução que me apresentou, quando lhe
         donaram a cabeceira dos seus filhos doentes  rim (ditas de diálise), muitas vezes com recurso  perguntei como iam as coisas:
         durante dias a fio. Vi filhos que choraram co-  a máquinas externas ao paciente.    Olha, decidi ir para o transplante – afirmou
         piosamente a morte de um dos pais. Vi velhos   A única solução definitiva (aquela que resta-  decidido.
         marinheiros, conhecidos de toda uma vida, que  belece a função renal) é o transplante renal, do     Falei com os meus médicos e a minha mu-
         evidenciaram mais carinho no leito de morte  qual muitos leitores anónimos já terão ouvido  lher está decidida a oferecer-me um dos seus
         de um camarada, do que a própria família di-  falar. Esse desejável tratamento, que implica  rins, assim a saúde dela o permita, e os rins sejam
         recta do paciente... Contudo, poucas situações  apesar de tudo tratamentos crónicos, tem logo  compatíveis. - Concluiu esperançado.
         da vida actual me parecem tão nobres, como  à partida um grande óbice. - A necessidade de   A informação calou fundo no meu íntimo.
         aquela que vos proponho contar, assim tenha  conseguir um rim compatível, já que cada um  Ainda que cada ser humano tenha, por regra,
         arte para tanto....                de nós é geneticamente distinto dos outros.   dois rins funcionantes, a doação não é um acto
           Cruzo-me frequentemente com determinado   Por outro lado não existem muitos rins livres  a tomar de ânimo leve para o doador. Trata-se,
         oficial marinheiro, com o qual mantenho uma  para transplante. A razão é simples, até há bem  disso estou certo, de uma acto da maior ge-
         relação de amizade, desde que ambos partilha-  pouco tempo a doação era um acto que de-  nerosidade que, ao presente, um ser humano
         mos os balanços de uma velha corveta. Soube,  pendia da família e estas são, entre nós, mui-  pode fazer por outro. É também  um acto de
         já há algum tempo, que a saúde lhe faltava. Sou-  to pouco generosas com os orgãos dos seus  grande coragem...
         be também que tinha problemas renais e que a  falecidos. Compreende-se então a lista de es-  O nosso marinheiro queria saber a minha
         situação não estava a evoluir bem. Finalmente,  pera (às vezes de muitos anos), que esperam  opinião, sobre o assunto. Fiquei sem saber bem
         recentemente, informou-me que estava em fran-  estes pacientes...Sabe-se ainda do roubo ou  o que lhe dizer, pois tenho pouca experiência
                                                                               com esta patologia. Aconselhei-o a procurar
                                                                               opinião junto dos nefrologistas (os médicos dos
                                                                               rins). Ele já o havia feito e tinha opiniões dís-
                                                                               pares. Meditei nos dias seguintes, em silêncio,
                                                                               sobre este assunto. Parecia-me que de todos os
                                                                               pontos de vista seria uma decisão díficil, que
                                                                               depende muito da relação do casal e do senti-
                                                                               mento de cada um, em relação a uma situação
                                                                               ao mesmo tempo tão importante e delicada.
                                                                                 Soube depois, por outros médicos, que a so-
                                                                               lução proposta pelo camarada de navegações
                                                                               não é inédita, nem especialmente rara. Acon-
                                                                               tece, muitas vezes, entre pais e filhos. - O que
                                                                               também não deixa de impressionar. Impressio-
                                                                               nou-me particularmente nesta época em que o
                                                                               egoísmo parece vencer, que ainda existam ges-
                                                                               tos destes, de pura doação...de extrema gene-
                                                                               rosidade e amor...Não sei, nesta data, qual será
                                                                               o desfecho final da situação. Sei contudo que
                                                                               este marinheiro já é um homem com sorte. Pois
                                                                               tem amor à sua volta.
                                                                                 A doação em Portugal deixou de ser, por de-
                                                                               creto lei, um acto voluntário. Isto é, a menos que
                                                                               o doador, em vida e de forma consciente, tenha
                                                                               afirmado que não quer doar nenhum dos seus
                                                                               orgãos, estes podem ser usados após a sua mor-
                                                                               te. Dito assim, parece um aviltar da pessoa após
                                                                               o seu falecimento. Parece-me, no entanto, que
                                                                               para quem parte, é uma forma de prolongar a
                                                                               sua vida, a sua memória, ajudando outros...De-
                                                                               cida, também, o leitor da justeza desta lei...que
                                                                               impede os mortos de levarem os seus orgãos
                                                                               para o Céu. Será prepotência, ou necessidade
                                                                               extrema, para que a vida continue...
                                                                                                               Z
                                                                                                             Doc

         30  ABRIL 2009 U REVISTA DA ARMADA
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