Page 140 - Revista da Armada
P. 140
HISTÓRIAS DA BOTICA (62)
A verdadeira generosidade
A verdadeira generosidade
á medida que os anos vão passando e a ca insuficiência renal. Trata-se de uma situação compra de rins, em paises empobrecidos do
experiência vai crescendo, impressiona- em que os rins, os principais orgãos reponsáveis mundo pobre...
H mo-nos menos. Como médicos vamos pela eliminação de resíduos, que podem agredir Ora o marinheiro desta história terá sido, aos
conhecendo toda a espécie de sofrimentos e o organismo entram em falência. Os rins asse- poucos, confrontado com as soluções, que – de
muitas das atitudes, boas e más que acompa- guram a homeostase (o equílibrio) do corpo hu- forma simples – atrás explícitei. Imaginará facil-
nham o sofrimento. Neste sentido, já observei mano e não podemos viver sem o seu funciona- mente, neste contexto, o leitor o sofrimento a
muitas atitudes genuinamente generosas em mento adequado. Sendo assim, para sobreviver que terá sido sujeito. Fiquei, contudo, surpreso
relação a quem sofre. Vi mães que não aban- é necesssário recorrer a técnicas substitutivas do com a solução que me apresentou, quando lhe
donaram a cabeceira dos seus filhos doentes rim (ditas de diálise), muitas vezes com recurso perguntei como iam as coisas:
durante dias a fio. Vi filhos que choraram co- a máquinas externas ao paciente. Olha, decidi ir para o transplante – afirmou
piosamente a morte de um dos pais. Vi velhos A única solução definitiva (aquela que resta- decidido.
marinheiros, conhecidos de toda uma vida, que belece a função renal) é o transplante renal, do Falei com os meus médicos e a minha mu-
evidenciaram mais carinho no leito de morte qual muitos leitores anónimos já terão ouvido lher está decidida a oferecer-me um dos seus
de um camarada, do que a própria família di- falar. Esse desejável tratamento, que implica rins, assim a saúde dela o permita, e os rins sejam
recta do paciente... Contudo, poucas situações apesar de tudo tratamentos crónicos, tem logo compatíveis. - Concluiu esperançado.
da vida actual me parecem tão nobres, como à partida um grande óbice. - A necessidade de A informação calou fundo no meu íntimo.
aquela que vos proponho contar, assim tenha conseguir um rim compatível, já que cada um Ainda que cada ser humano tenha, por regra,
arte para tanto.... de nós é geneticamente distinto dos outros. dois rins funcionantes, a doação não é um acto
Cruzo-me frequentemente com determinado Por outro lado não existem muitos rins livres a tomar de ânimo leve para o doador. Trata-se,
oficial marinheiro, com o qual mantenho uma para transplante. A razão é simples, até há bem disso estou certo, de uma acto da maior ge-
relação de amizade, desde que ambos partilha- pouco tempo a doação era um acto que de- nerosidade que, ao presente, um ser humano
mos os balanços de uma velha corveta. Soube, pendia da família e estas são, entre nós, mui- pode fazer por outro. É também um acto de
já há algum tempo, que a saúde lhe faltava. Sou- to pouco generosas com os orgãos dos seus grande coragem...
be também que tinha problemas renais e que a falecidos. Compreende-se então a lista de es- O nosso marinheiro queria saber a minha
situação não estava a evoluir bem. Finalmente, pera (às vezes de muitos anos), que esperam opinião, sobre o assunto. Fiquei sem saber bem
recentemente, informou-me que estava em fran- estes pacientes...Sabe-se ainda do roubo ou o que lhe dizer, pois tenho pouca experiência
com esta patologia. Aconselhei-o a procurar
opinião junto dos nefrologistas (os médicos dos
rins). Ele já o havia feito e tinha opiniões dís-
pares. Meditei nos dias seguintes, em silêncio,
sobre este assunto. Parecia-me que de todos os
pontos de vista seria uma decisão díficil, que
depende muito da relação do casal e do senti-
mento de cada um, em relação a uma situação
ao mesmo tempo tão importante e delicada.
Soube depois, por outros médicos, que a so-
lução proposta pelo camarada de navegações
não é inédita, nem especialmente rara. Acon-
tece, muitas vezes, entre pais e filhos. - O que
também não deixa de impressionar. Impressio-
nou-me particularmente nesta época em que o
egoísmo parece vencer, que ainda existam ges-
tos destes, de pura doação...de extrema gene-
rosidade e amor...Não sei, nesta data, qual será
o desfecho final da situação. Sei contudo que
este marinheiro já é um homem com sorte. Pois
tem amor à sua volta.
A doação em Portugal deixou de ser, por de-
creto lei, um acto voluntário. Isto é, a menos que
o doador, em vida e de forma consciente, tenha
afirmado que não quer doar nenhum dos seus
orgãos, estes podem ser usados após a sua mor-
te. Dito assim, parece um aviltar da pessoa após
o seu falecimento. Parece-me, no entanto, que
para quem parte, é uma forma de prolongar a
sua vida, a sua memória, ajudando outros...De-
cida, também, o leitor da justeza desta lei...que
impede os mortos de levarem os seus orgãos
para o Céu. Será prepotência, ou necessidade
extrema, para que a vida continue...
Z
Doc
30 ABRIL 2009 U REVISTA DA ARMADA