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HISTÓRIAS DA BOTICA (60)



                                              A Escolha
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                                                                                 Desenho enviado de Kabul, Afeganistão pelo autor em 10 Dez 08

           (…) Quem não puser a imortal bandeira da  chegar a determinado grau académico, ou que  pero social profundo. Este provém de um senti-
         pátria à janela da sua casa, não merece estar  se dedicaram, com alma e coração, às várias  mento de tragédia pessoal, que muitos assumem
         vivo, Aqueles que não andarem com a bandei-  fases de uma qualquer profissão até atingirem  com foros de irreversibilidade, que provém de
         ra nacional bem à vista é porque se venderam  um grau de mestria, que lhes será certamente  expectativas falhadas. Refiro-me, particularmen-
         à morte, Junte-se a nós, seja patriota, compre  reconhecido.          te, a uma legião de pais cujos filhos fizeram cur-
         uma bandeira (…)                     Vivemos agora, em Portugal, um período de  sos superiores, almejando empregos e proventos
                                            profunda crise económica e social. Estes tem-  que a geração anterior não atingiu, mas que es-
                        In “As intermitências da Morte”,
                                 José Saramago  pos, compreenderão os leitores, têm profun-  tão desempregados, ou sujeitos a empregos in-
                                            das consequências na saúde do indivíduo e,  diferenciados, precários, bastante piores que os
               ão é da nossa escolha a época em que  consequentemente, na prática dos médicos.  dos seus pais…Existe agora, também, de forma
               vivemos, não a podemos escolher mais  Nestes dias tenho visto militares (na reforma)  forçada, um novo conceito de família alargada.
         Npacífica, ou menos conturbada. Se as-  e imensos não militares, que contam histórias  Trata-se dos avós, dos pais, dos filhos, muitas
         sim fosse, muitos teriam escolhido, por exem-  tristes de vida, impregnadas de um sofrimento  vezes também, dos netos. Todos partilham um
         plo, não ter sofrido a guerra ou qualquer outro  generalizado, que até agora não me havia sido  qualquer dois ou três assoalhadas dos vastos su-
         tempo de desgraça em que, infelizmente, a hu-  dado conhecer, neste nosso país. As histórias  búrbios de Lisboa, porque os filhos, mesmo com
         manidade é fértil. A única escolha, que nos é  mais comuns têm pura e simplesmente a ver  emprego, não conseguem suportar os encargos
         permitida fazer – como seres humanos – é do  com a incapacidade de pagar os medicamentos.  de um aluguer, e, muito menos ainda, um cré-
         que vamos fazer com o tempo que nos foi con-  Neste particular, tem havido uma verdadeira re-  dito para a compra de uma casa…
         cedido nesta vida. Esta importante decisão mar-  volução entre nós. Os medicamentos baixaram   A depressão é a regra social prevalente nes-
         cará, profundamente, quem somos.   o preço, por decreto, mas isso de pouco alívio  te tempo, que nem os milhares de centros co-
           Existiram sempre os proverbiais dois cami-  tem servido aos pacientes, pois o valor das com-  merciais – aspecto em que estamos na cabeça
         nhos: o fácil e o difícil. Alguns de nós, perdidos  participações tem evoluído de forma progressi-  do mundo civilizado, com todos as suas luzes
         no turbilhão do mundo tentam fazer o melhor  va, mas decididamente no sentido do “utiliza-  brilhantes e néones fosforescentes – conseguem
         que podem das suas escolhas. Eu acredito – ain-  dor pagador”…Estamos na época das receitas  remediar. Chegou a altura, pensará o leitor e
         da que raramente me peçam opinião – que as  pré-datadas (sim, como os cheques), em que o  muitos outros, de achar culpados para toda
         melhores escolhas são as que não têm apenas  paciente gere os medicamentos ao longo dos  esta situação, que afecta uma vasta multidão.
         os interesses do próprio em mente. Estas últi-  meses consoante os seus proventos. Muitos, par-  Ao contrário do que muitos pensam, admito
         mas, que implicam sempre um “salto de fé” –  ticularmente os mais velhos e necessitados, não  que a culpa não é deste ou daquele governo,
         isto é implicam geralmente muito sacrifício no  tomam tudo o que precisam e chegam mesmo  mas de todo um sistema – que se criou e man-
         imediato, para atingir recompensas tardias, e,  a mentir – por vergonha de dizer que não têm  teve as diferenças sociais mais acentuadas da
         muitas vezes mesmo, muito distantes. Estes são  dinheiro para pagar a farmácia…  Europa Ocidental. Ora eu que não sou, nem
         os caminhos das pessoas que estudaram para   Existe ainda, logo após a superfície, um deses-  tenho pretensões a ser, político, acredito ainda

         30  JANEIRO 2009 U REVISTA DA ARMADA
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