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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (8)
O naufrágio da nau S. Paulo na costa de Samatra
De todos os artigos que venho publican- Antão Martins, e foi contratada pelo vice-rei abordando o Indostão, eventualmente, vindo
do há vários anos, sobre episódios pas- D. Pedro de Mascarenhas, para reforçar a ar- de sul para norte, lá para Fevereiro ou Março.
sados da Marinha Portuguesa, nunca mada que deveria vir a Lisboa em 1554. Re- O texto não é muito claro quanto a esta va-
riante da derrota, sobretudo no que diz res-
dediqueiumnúmeroaosnaufrágios.Elestive- gressou ao Oriente com D. João de Meneses peito à forma como seria feita a aterragem,
dizendo-nos apenas que foi assim que pro-
ram o seu lugar na sequência de acontecimen- (1556), voltando a Lisboa em 1558 e partindo cedeu o piloto que fez a viagem de 1556/57,
depois de também ter arribado ao Brasil e ali
tos de outra ordem, mas nunca preencheram em 1560 para a viagem em que se perdeu. Diz se ter atrasado. Diogo do Couto, contudo, é
explícito na sua escrita, dizendo que a ideia do
um número completo destas histórias da Ma- Henrique Dias que era muito forte, navegava piloto era abordar a ilha de Samatra, passar
no Estreito de Sunda, e demandar Malaca a
rinha. No entanto aconteceram e tiveram sem- muito bem com mar pela popa, mas era pesa- tempo de fazer a viagem para a Índia na épo-
ca própria. Pode parecer uma hipótese dispa-
pre uma dimensão trágica que, nalguns casos, da para a bolina e (acrescenta o autor) talvez
ratada, num olhar rápido para
ficou gravada na memória nacional através tenha sido essa a razão por que teve sempre o mapa, mas deve dizer-se que
o piloto em causa era António
dos relatos que até nós chegaram. O mais co- dificuldade na volta do mar do Atlântico sul. Dias, referido como sendo a
primeira vez que fora a Lis-
nhecido de todos foi o do galeão S. João, onde Em 1556 atrasou-se nesta rota e teve de arribar boa e fazia o regresso à Índia,
mas como muito conhecedor
viajava Manuel de Sousa Sepúlveda e toda a ao Brasil para reabastecer, acontecendo o mes- das derrotas do Oriente, onde
exercera a profissão. E, sobre-
sua família, que se perdeu na costa do Natal mo nesta fatídica viagem de 1560. O boticário vivendo ao naufrágio, estra-
nho seria que não chegasse à
em 1552. Mereceu apenas uma fala com Couto, que não inven-
taria esta ideia de fazer a volta
referência breve na Marinha de pelo Estreito de Sunda.
D. João III (40), quando falei do Averdade é que o navio cor-
reu de oeste para leste todo o
honesto governador Garcia de Índico Sul, passou perto de
uma ilha desconhecida dos
Sá e das suas duas filhas: uma portugueses (provavelmente
a IlhaAmsterdam ou St. Paul),
delas Dª Leonor de Albuquer- a partir da qual foi ganhando
a latitude do Equador e acabando por en-
que que casou com Sepúlveda calhar, a 21 de Janeiro, na costa oeste de Sa-
matra, no meio de um temporal que não os
e veio a perecer nas praias da deixava governar. O navio ficou assente em
lodo, permitindo desembarcar toda a gente
costa oriental africana, na se- com relativa segurança. Apartir daí, a desor-
dem e a falta de comando foram as causas da
quência desta tragédia. perda de muitas vidas, na maioria dos casos
vítimas de ataques de populações, contra as
Pareceu-me, por isso, im- quais não conseguiram defender-se de forma
organizada, apesar de terem recuperado toda
portante falar de uma viagem a artilharia e armamento ligeiro que levavam
a bordo. Os sobreviventes alcançaram, de fac-
que tenha resultado em nau- to, o estreito de Sunda e, perto de Bantam, en-
contraram portugueses que negociavam em
frágio, para que se tenha a no- pimenta que iam vender à China. Foi num
dos seus navios que chegaram a Malaca, em
ção do conjunto de circuns- Julho de 1561. Se a ideia do piloto era dirigir-
-se ao Estreito de Sunda, como diz Diogo do
tâncias que concorriam para Couto, essa seria a viagem que os Holande-
ses fariam algumas décadas mais tarde, e de
a tragédia, sobretudo porque que alguns documentos portugueses já falam,
nos anos trinta e quarenta, como uma viagem
foi na repetição destas expe- possível de acesso ao Extremo Oriente.
riências nefastas que se gerou Nau S. Paulo, da armada da Índia de 1560. Z
Livro de Lisuarte de Abreu.
uma cultura de prudência, de J. Semedo de Matos
cuidado, de respeito pelo mar,
CFR FZ
de cumprimento escrupuloso de rotinas de refere que o contratempo de 1556 foi uma das
segurança e o estabelecimento de um con- razõesquelevouopilotoaaproximar-seainda
junto de procedimentos rigorosos, que hoje maisdeÁfrica,procurandoganharbarlavento
fazem parte da cultura da Marinha e são para dobrar o Cabo de Santo Agostinho. Infe-
uma preocupação constante em todos os ní- lizmente, voltaram a encalmar e a atrasar-se,
veis de formação do nosso pessoal.Aescolha arribando de novo ao Brasil para reabastecer
da viagem da nau S. Paulo, saída de Lisboa e curar os doentes. Entraram na Baía de Todos
em 1560, deve-se ao facto de o navio ter se- os Santos a 17 deAgosto, sem nenhuma possi-
guido uma derrota heteróclita que merece bilidade de dobrar o Cabo da Boa Esperança e
ser analisada e compreendida, apesar de ter chegar nesse ano à Índia, pela rota normal de
terminado num naufrágio ocorrido na costa Moçambique.
de Samatra, muito longe do local de destino. O Padre Manuel Álvares escreveu, no Bra-
Deste percurso existem duas descrições cir- sil, uma carta ao Geral da Companhia – como
cunstanciadas feitas por duas testemunhas era procedimento dos jesuítas –, de forma que
presenciais que viveram o desastre: uma de- o texto em que fala do naufrágio foi escrito
las é a carta do padre jesuíta Manuel Álvares; em Cochim (e não em Goa, como refere por
e outra é a descrição do boticário Henrique lapso Frazão de Vasconcellos) a 5 de Janeiro
Dias, reunida por Bernardo Gomes de Brito de 1562, falando apenas da viagem a partir
na História Trágico-Marítima. Parece-me im- do Brasil, mas coincidindo com o discurso
portante considerar ainda a referência breve de Henrique Dias, nos pormenores mais sig-
de um pequeno capítulo da década sétima de nificativos. Diz-nos então que partiram a 2
Diogo do Couto, cronista que chegou à Índia de Outubro, uma data que impossibilitaria a
em 1559, e não pode ter deixado de se impres- passagem de Moçambique à Índia nesse ano.
sionar com a dimensão dos acontecimentos, Contudo – explica o boticário – que foi opi-
tomando as devidas notas. nião do piloto seguir uma derrota por fora da
Anau S. Paulo foi construída no rioAnkola Ilha de Madagáscar, mantendo-se com rumo
amandodeumcomercianteprivado,denome a leste, por latitudes entre os 37°S e os 40°S,
24 MAIO 2010 U REVISTA DA ARMADA

