Page 30 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (76)

O curso …e a geoestratégia dos pequenos…

voltei à escola. Um grupo pequeno, num             terra, que o levaria                                 cansar-se fisicamente….O ciclo fechou-se e
       curso concentrado em três meses. Apre-      a atravessar o con-                                  chegou ao pároco em questão e daí até esta
       senta a heterogenia – na formação de        tinente...                                           conversa e a esta história...
base – que enriquece a Marinha: engenheiros,
hidrógrafos, informáticos e um piloto aviador        Fugiu, com ou-                                       Voltemos ao curso, enquanto ouvia um e
naval. Os temas são variados – vão desde os        tros dois através da                                 outro conferencista sobre a geoestratégia do
campos das ciências sociais, aos campos da         selva do seu Congo                                   mundo, as relações Norte-Sul e toda a sorte de
operacionalidade, economia e temas de cariz        Natal até Cabinda.                                   operações de apoio à paz, ocorreu-me a histó-
geopolítico mundial e nacional. Fazer um curso     Em Cabinda viveu                                     ria deste homem. - Bem real e pungente de so-
destes é rever alguns camaradas, antigos com-      cerca de um ano.                                     frimento. Ocorreu-me que é sobre esta dinâmi-
panheiros de embarque, outros, que passamos a      Conseguiu traba-                                     ca de seres humanos, sobre a qual deveríamos
conhecer e a reconhecer como amigos…               lho num terminal                                     meditar. A história deste homem quebra vários
                                                   de uma grande                                        mitos. O primeiro é de que os europeus estão
  Estamos num espaço físico distinto. Vamos        companhia petro-                                     isentos de culpa, no que diz respeito às desgra-
chamar-lhe “integrado” – na falta de outro termo   lífera ocidental. Fa-                                ças a que os africanos humildes sofrem e de que
que exemplifique melhor o sentimento que lá se     zia tudo o que lhe                                   são os governos africanos os únicos culpados.
vive. Há muito verde e pavões, que não gostam      pediam, cozinhou, limpou tanques de navios,          Na verdade, são os interesses ocidentais (petró-
de carros vermelhos e fazem sentir os seus pios,   fez de estivador… fez tudo o que lhe foi requi-      leo, pedras preciosas e, pelos vistos, até compo-
exóticos, a tempos regulares. É um investimento    sitado. Quando conseguiu algum dinheiro su-          nentes minerais para a electrónica…), que ditam
na cultura, do qual me interessam mais os temas    bornou um capitão de um petroleiro, homem            essas desgraças através de um apoio parcial a
de cariz social e da geopolítica mundial – que     do Leste Europeu, que o transportou até Dakar,       este ou aquele governante…Por outro lado, há
me apaixona…                                       no Senegal (ele tinha ouvido que daí era fácil       que reconhecê-lo, poucos governos ocidentais
                                                   chegar à Europa…).                                   (e até outra potência emergente, com grande
  Ocorreu-me, aqui e hoje, falar da geoestra-                                                           influência em África: a China), se preocupam
tégia que interessa particularmente aos médi-        No Senegal as coisas não lhe correram nada         muito com a qualidade do governo deste ou da-
cos – cuja missão deve ser aliviar o sofrimento    bem. Viveu do pouco dinheiro que tinha con-          quele dirigente africano, desde que no terreno
– e da qual também tenho vários exemplos de        seguido amealhar e quando este acabou, pro-          os seus interesses estejam salvaguardados. Ora
um conhecimento tão profundo, que chega a          curou viver de pequenos trabalhos – mas ha-          eu admito que civicamente deveríamos intervir.
ser doloroso… Portugal, aliás como toda a Eu-      veriam milhares como ele, na mesma ânsia             Na verdade, sou adepto daquela máxima que
ropa, passou a estar no imaginário paradisíaco     de partir para Norte. Esteve em Dakar cerca de       o tempo honrou: “para que o mal vença, basta
de muitas pessoas que vivem em países pobres       dois anos. Passou fome. Por fim, juntou algum        que os homens de bem não façam nada” e tem
– particularmente de África (…um continente,       dinheiro e ganhou coragem para se juntar aos         sido em larga medida esta a atitude do mundo
dizem muitos, esquecido pelos homens e por         grupos que faziam a viagem, através do gran-         desenvolvido em relação a África…
Deus…). Na Amadora, cidade onde habito,            de deserto…
vivem muitos destes cidadãos do mundo e as                                                                Esta história prova outra coisa. A atitude mais
histórias que contam são um exemplo da geo-          Partiu de Dakar à noite (e a partir dai, ele e os  ou menos hipócrita que os países têm tido em
estratégia perversa, que afecta muitos e, por ex-  seus companheiros, viajaram quase sempre a           relação à emigração africana.Todos acham que
tensão, também nos envolve …                       coberto da escuridão). Sobreviveu ao deserto do      devia ser regulada.Todos acham que é necessá-
                                                   Saara, mas testemunhou muitas mortes, de ou-         ria, mas na realidade pouco tem sido feito nes-
  Conheci, há não muito tempo, um cidadão          tros menos robustos do que ele. Chegou à Libía,      se sentido. Não há uma verdadeira integração
da República do Congo. Foi-me enviado por um       onde esteve detido durante algum tempo. Quan-        desses emigrantes – que são responsabilidade
pároco de uma freguesia periférica dos dormi-      do saiu do centro de detenção, trabalhou, mais       de todos. Crescem os bairros de lata. Cresce a
tórios de Lisboa.Tinha um problema congénito       uma vez, em tudo o que lhe pediam. Subornou          violência e no final todos sofrem mais ainda: os
de coração.Tratava-se de uma situação relativa-    mais alguém. Fez a viagem por mar até Marrocos.      emigrantes e os locais, que vêm alterada num
mente comum, habitualmente tratada antes da        Em Marrocos esteve ainda mais um ano. Quando         ápice (menos do que uma geração) a moldura
adolescência. O referido cidadão, procurou aju-    juntou dinheiro atravessou o estreito de Gibraltar   humana e cultural das suas comunidades. Indis-
da junto da igreja, porque não conhecia mais       até Espanha, onde mais uma vez chegou a cober-       cutivelmente os africanos prefeririam ficar nas
ninguém a quem recorrer. A minha participa-        to da noite a uma praia de Algeciras…                suas terras, sem se sujeitar a viagens que duram
ção foi pequena. Um ecocardiograma que fez o                                                            anos, cheias de risco até para a própria vida. Os
diagnóstico e a referência a um cirurgião cardía-    Trabalhou durante um Verão na apanha da
co, que resolveu definitivamente a questão.        fruta, no Sul de Espanha escaldante. Não gostou.
                                                   Estava ilegal e sentiu-se perseguido. Atravessou
  Na conversa de circunstância que alternava       a fronteira de Portugal, num autocarro normal –
entre um mau francês (o meu) e um mau por-         era dia – ninguém lhe perguntou nada. Chegou
tuguês (o dele), quis saber como se tinha fixa-    ao Rossio, em Lisboa. Travou conversa com al-
do em Portugal. A sua viagem é um exemplo          guns guineenses que falavam francês. Ao outro
da geoestratégia moderna, que o mundo glo-         dia trabalhava nas obras. Esteve assim, ilegal,
balizado proporcionou.Teria sido obrigado por      durante cerca de três anos. Primeiro dormia lá,
um senhor-de-guerra local a trabalhar em mi-       na própria obra. Depois, quando a fiscalização
nas no meio da selva. Foi-me difícil perceber o    dos ilegais apertou no local de trabalho, cons-
que se extraía nessas minas. Fiquei, contudo, a    truiu uma casa precária naquele bairro emble-
perceber que se tratava de um mineral usado        mático da emigração em Portugal chamado
para fazer material electrónico: telemóveis, por   “Cova da Moura”.Aproveitou, só recentemente,
exemplo. De toda a forma, o paciente congolês,     as facilidades de legalização para regularizar a
era muito mal tratado, ao nível da escravidão.     sua situação em Portugal entretanto, na mesma
Decidiu fugir e iniciou uma odisseia por mar e     medida em que ia envelhecendo, começou a
30 JULHO 2010 • Revista da aRmada
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