Page 17 - Revista da Armada
P. 17

Comandante
Henrique Lopes de Mendonça

                                               (1856-1931)

     “foi um perfeito tipo de marinheiro-letrado, dando à designação o sentido de personalidade que se realizou em plenitude, a um tempo
interessado pela técnica da sua profissão de marinheiro (…) e pela missão a que a consciência de português, de homem e de artista o obrigava,

                             uma obra de exaltação pelo livro e pela conferência, das qualidades mais nobres de Portugal”
                                                                          Hernâni Cidade1

                                               “um escriptor de raça e (...) um honrado carácter”

                                               Bulhão Pato2

1890. Janeiro. O mês aproxima-se                                                                   Arquivo histórico - BCM     Parece ter tido uma menini-
      do seu termo. Alfredo Keil apare-                                                                                     ce despreocupada. Até aos nove
      ce em casa de Henrique Lopes de                                                                                       anos, vai visitando regularmente,

Mendonça, “«afogueado e ansioso»,                                                                                           na companhia de seu pai, o seu pa-

a pedir-lhe a letra para uma música                                                                                         drinho e tio António Pedro Lopes

que já estava composta”. Este res-                                                                                          de Mendonça. Para além de primo

pondeu-lhe, hesitante: “«Isso é uma                                                                                         de seu pai, ele era ainda irmão de

tarefa terrível. Compor versos para                                                                                         sua mãe. As visitas eram primeiro

uma música já feita! Chama-se a isso                                                                                        na casa deste, ali na Travessa de

andar o carro adiante dos bois.» Para                                                                                       S.Mamede, e, depois de 1860 e até à

tornar tudo mais difícil, Keil precisa-                                                                                     sua morte, em 1865, em Rilhafoles,

va do poema com a máxima urgên-                                                                                             onde foi internado por ter enlou-
                                                                                                                            quecido. No dizer de Carlos Leone 5,
cia: não convinha «deixar arrefecer

o entusiasmo do povo», a quem Keil                                                                                          António Pedro “foi um homem do

queria fazer adoptar a marcha como                                                                                          seu tempo, naquele sentido pleno

um canto de reivindicação nacional.                                                                                         em que moldou esse tempo tanto

(…) Pacientemente, Mendonça ouviu                                                                                           quanto ele o moldou a si.” Num

Keil executar a partitura ao piano,                                                                                         país que lentamente se recompu-

«interrompendo-se para (…) fazer no-                                                                                        nha das feridas das convulsões da

tar as reminiscências da Marselhesa                                                                                         primeira metade do século, as elites

e do fado que ele propositadamente                                                                                          letradas de então tentavam levar o

introduzira, reflectindo o carácter sen-                                                                                    futuro ao povo. Sendo considerado

timental da alma portuguesa e a sua                                                                                         um dos primeiros socialistas por-

ânsia ardente de liberdade». Foi final-                                                                                     tugueses, António Pedro tentava

mente em casa de Keil que Mendonça                                                                                          transformar, pela pena e pela acção.

compôs «as estrofes, compasso a com-      Henrique Lopes de Mendonça ‗– Capitão-Tenente                  Politicamente, participou no
passo, acomodando constantemente                                                                   campo setembrista nos combates da

o verso não só à contextura musical,           a 1851. Tinha a coragem, a mais austera das         Revolução da Maria da Fonte e da

mas às intenções de cada frase, engas-                                                             Patuleia (1846-1847), demonstrando
tando uma sílaba em cada nota que ele ar- suas convicções profundamente democra- bem o seu pendor esquerdista. Ainda em
rancava ao piano»”3.                           tas, e declarava-as bem alto, sem rebuço, 1847, foi convidado por José Estêvão para
Aqui nasceu o poema para «A Portu- n’um período em que pelo menos era pre- integrar a redacção do jornal A Revolução de
guesa». Assim nasceu o Hino Nacional. Foi ciso coragem para o fazer” 4. Foram estes os Setembro, como articulista a tempo inteiro.
no calor das reacções ao Ultimatum britâ- princípios que moldaram também o espíri-                 António Pedro “introduziu o folhetim
nico de 11 de Janeiro de 1890, que surge a to do jovem Henrique.
                                                                                                   literário no jornalismo, exerceu com espí-

música que de seguida pede as palavras                                                             rito moderno a crítica literária e foi autor

para dar voz a este momento de raiva e de                                                          de um dos primeiros romances de actuali-
                                                                                                   dade, Memórias de um Doido (1849, reescrito
exaltação patriótica.
                                                                                                   em 1859), «romance contemporâneo», as-
É desta forma que Henrique Lopes de                                                                sim mesmo expressamente designado” 6.

Mendonça se torna, involuntariamente,

num dos heróis da República que se iria                                                            Em 1850 fundou, com Francisco de
                                                                                                   Sousa Brandão, O Eco dos Operários 7, «co-
instaurar vinte anos mais tarde.

Henrique Lopes de Mendonça nasce                                                                   laborado por literatos e operários», como

em Lisboa, no 2º andar do nº 93 da Rua                                                             podia ler-se no cabeçalho, primeiro jornal

dos Calafates, actualmente Rua do Diário                                                           que, inspirado nas teorias de Proudhon,

de Notícias, a 12 de Fevereiro de 1856, filho                                                      Fourier, Louis Blanc, tomava a defesa da

de António Raulino Lopes de Mendonça,                                                              classe operária e apelava para a necessida-

funcionário da Câmara dos Deputados, e                                                             de de organizar um movimento associa-

de Honorata Lopes de Mendonça. Num                                                                 tivista, que vinha a esboçar-se desde 1834

elogio fúnebre, seu pai foi definido como                                                          e culminaria em 1872 com a fundação da

                                                                                                   Fraternidade Operária e a adesão à Asso-
um “carácter de rija tempera, amassado                                                             ciação Internacional dos Trabalhadores.” 8

nas lutas liberais que se feriram desde 1820 Fragata “D. Fernando II e Glória”                     Todavia, para Antero de Quental, “Lopes

                                                                                                   17REVISTA DA ARMADA • MARÇO 2011
   12   13   14   15   16   17   18   19   20   21   22