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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (17)
O epílogo da presença portuguesa nas Molucas
Foi na sequência da conquista de Malaca A percepção de que os rendimentos eram são muito críticos da forma como que se lidou
que, pela primeira vez, os navios portu- fracos para o esforço despendido é cada vez com os problemas locais, e entrevê-se por entre
gueses sulcaram os mares da Insulíndia, maior e o empenhamento nacional vai decain- a névoa dos textos, que os residentes “casa-
em busca das Ilhas das Especiarias, de onde do a pouco e pouco. Ser capitão de Ternate era dos” tiveram alguma influência no desenrolar
vinha o cravo, a noz e o macis. Tive ocasião de interessante para uma certa nobreza, porque dos acontecimentos, mas é difícil perceber até
referir anteriormente, como foram alcançadas a viagem de regresso lhe daria o lucro com- que ponto. A verdade é que, enquanto decor-
as ilhas Molucas e que interesses suscitavam pensatório de três anos de canseira, mas desde ria a campanha em Amboíno, onde Marrama-
essas ilhas à coroa de Portugal, ao ponto de muito cedo que a própria capitania foi um foco que contava com a ajuda dos reis de Tídore e
se digladiar com os castelhanos por causa da de problemas, envolvendo figuras de pouco Bachão, Cachil Aeiro foi assassinado à saída da
sua posse, desenvolvendo um considerável escrúpulo, a quem a distância e inacessibilida- fortaleza de Ternate, depois de um encontro
esforço militar para aí manter uma com o capitão Diogo Lopes de Lima
fortaleza e uma guarnição perma- (Mesquita?). E as circunstâncias desse
nente, que porfiava carregar todos os acontecimento provocaram tal revolta
anos um navio com cravo que seguia nas ilhas, que todos se congregaram
depois para Malaca e para a Índia. contra os portugueses. Sucedeu-lhe
Só cerca de 1/8 desse carregamento seu filho, Cachil Babu, que não teve
era canalizado para a Europa, onde dificuldade em acicatar os ódios e
o mercado deste produto era escasso, provocar um levantamento em toda a
apesar do restante entrar nos circuitos linha. Perdida a aliança dos restantes
de comércio orientais com algum re- soberanos das Molucas e a braços com
torno para a coroa, fosse sob a forma o recrudescimento da revolta dos hitos
de rendimento directo, fosse como em Amboíno, Marramaque não conse-
recompensa de serviços prestados. As guia acudir a todos os fogos e Ternate
Molucas – onde se cultivava – eram, acabou por cair. A fortaleza rendeu-
contudo, umas ilhas demasiado lon- -se após um longo cerco e a povoação
gínquas, cuja rota tinha várias dificul- portuguesa foi completamente devas-
dades, causadas pela proximidade sada. Os que conseguiram sobreviver
do Equador e pelo desencontro das retiraram-se para Amboíno, terminan-
monções. A viagem mais vulgar a do assim uma presença emblemática
partir de Malaca – aquela que os mer- que fora o pomo de uma discórdia
cadores preferiam fazer por ser a mais ibérica intensa. A posse das ilhas do
lucrativa para quem lá andava – podia cravo – A Questão das Molucas – que
demorar um ano e meio, e mesmo a valera conflitos, conferências e tratados,
via mais curta e directa, feita pelo nor- e que se resolvera com o pagamento de
te de Bornéu, era uma empresa difícil uma avultada quantia ao imperador
e perigosa que só agradava às elites da Carlos V, esfumava-se sem glória na
Índia e de Lisboa. Foram certamente sequência de uma agonia sem retorno
estes problemas que dificultaram o Fragmento de uma carta onde se podem ver as Molucas, a ilha que remonta aos anos quarenta ou cin-
controlo administrativo sobre aque- de Ceram e Amboino. quenta. É fundamental reler os factos e
las ilhas. Não era fácil reunir os meios Atlas de Bartolomeu Velho, ci 1560. reflectir sobre eles, tentando perceber se
necessários para garantir o monopólio o problema levantado pela viagem de
do comércio do cravo decretado pela coroa, de apagavam o sentido do dever. Figuras sin- Fernão de Magalhães não terá sido um proble-
sobretudo porque uma boa parte dos que não gulares, como Duarte Galvão, são a excepção mapolíticoibérico,resultandomaisdocontexto
estavaminteressadosneleeramosmilharesde que confirma a regra. psicológico de uma rivalidade tradicional entre
portugueses que deambulavam pelo Extremo A missão de Gonçalo Pereira Marramaque, PortugaleCastela,doquenovalorcomercialou
Oriente, vivendo mais ou menos em diáspora, de que falei na anterior Revista, era muito difí- estratégico dumas longínquas ilhas.
entregues aos seus próprios negócios. cil e decorria em ambiente minado por proble- A empresa de Marramaque não resultou
Tenho vindo a referir todos estes proble- mas que já não tinham solução. A documen- num desastre total porque Cachil Babu, depois
mas, sempre que falei nas Molucas, mas não tação diz-nos que visava retirar do poder o rei de vencer os portugueses, tentou subjugar os
é demais repeti-lo de forma sintética, para de Ternate, Cachil Aeiro, e repor a paz e a so- seus aliados e fez com que o rei de Tídore pro-
que se possam compreender e relacionar as berania em Amboíno, onde os hitos se tinham curasse abrigo no reatamento das relações com
componentes de uma presença deficiente que revoltado contra os portugueses. Este povo Portugal, permitindo a construção de uma for-
acabou com uma expulsão inglória no final dominava a pequena península que fechava taleza na sua ilha. Mas o prestígio nacional esta-
do século. Aquelas ilhas eram muito pobres e o ancoradouro principal da ilha e fora aliado va irremediavelmente abalado. Mesmo com a
apenas produziam o cravo, cuja importância sincero dos portugueses, mas revoltara-se re- união das coroas ibéricas e a efectiva ajuda que
comercial não era a que se chegou a pensar no centemente, beneficiando da ajuda da rainha Castela daria aos portugueses nas Molucas, em
princípio do século. Só fazia sentido ir buscar o de Japara (ilha de Java). A campanha foi par- Banda e em Amboíno, os anos sequentes foram
cravo, se isso fosse enquadrado num processo ticularmente dura, mesmo depois de ter sido depersistentedecadênciaatéàocupaçãoholan-
comercial mais vasto, envolvendo toda a re- construída a fortaleza de madeira, na margem desa em 1605.
gião do Arquipélago e os circuitos mercantis norte da parte mais abrigada da grande baía
do Índico, mas isso implicava uma liberdade onde os navios tinham ficado fundeados e
mercantil para que o Império não estava voca- onde foram varadas todas as pequenas embar- J. Semedo de Matos
cionado. cações. A maioria dos testemunhos da época CFR FZ
16 MARÇO 2011 • REVISTA DA ARMADA