Page 30 - Revista da Armada
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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA (1)
O Marinheiro Esclarecido e os tempos difíceis
Voltei. Provavelmente cedo de mais? Cruzei-me com um amigo. Ele sorriu e perguntou se afinal eu estava zangado com a Revista da Armada
(RA). Disse-lhe que não, que nunca estive zangado com a RA. Pareceu-me aliás uma reputada injustiça, essa suposição…afinal por várias vezes
afirmei que na RA só encontrei amigos – presentes vezes sem conta, em dias de vento Norte, frio e duro. São os mesmos amigos que sempre, sempre
me louvaram em dias quentes de Verão sereno…no meu coração…
Esse mesmo amigo, em conversa séria, afirmou a necessidade duma escrita assim, tão próxima, tão pessoal…certamente um exagero! Contudo,
nunca antes o país pareceu estar em tal crise e a Marinha não foi poupada…E quem sabe, talvez a Marinha, no seu todo, goste mais desta escrita
lamechas do que eu próprio supunha…
Hoje a informação corre livre. Po- necessidades, vê-se agora nu, de repente e ao durante anos na minha mente infantil,
demos discutir se é correcta se é frio…Concluiu triste. associadas à noção de justiça e à luta que
ou não dirigida na direcção cer- alguns empreendem para a defender…
ta. Podemos mesmo decidir se é ou não Lembrei-me então que, tinha apenas Em verdade, estas certezas ainda ecoam,
completamente livre? O que se afirma ver- 10 anos, quando me tomei de razões com força renovada, neste nosso país.
dadeiro é que para muitos, felizmente, a com um rapagão de 14 anos por causa
verdade ainda conta e de uma bola. Ele preparava-se para me Assim, não é compreensível – por
é um bem a perseguir. mais argumentos que
Também é verdade, fazer sentir o peso da sua idade, quando se esgrimam – a pre-
que, ao contrário de a minha avó o lembrou de uma certeza texto de um período
outros tempos, todos que carrega o peso da humanidade: de escassez, que se
têm o direito a formar -Ouve lá, não sabes que bater nos mais pe- retire a quem já tem
a sua opinião. Todos quenos é uma vergonha?! pouco, a quem vive
acreditam na sua ra- do seu trabalho, man-
zão e os médicos (por Esta frase salvou-me de uma monu- tendo, sabemos bem,
mister de profissão), mental “coça”, pois o matulão teve mes- muitas vezes intac-
são frequentemente os mo a bendita “vergonha” e libertou-me tos os privilégios a
primeiros a ouvi-la… do amplexo em que me continha. De- quem deles não quer
Assim foi com o jovem pois, como todos nós, cresci. Cresci num prescindir. As “mas-
Marinheiro, que por tempo em que um pequeno televisor, a sas” humildes, que se
razões que serão claras preto e branco, emitia séries antigas, em chamam João, Maria
chamarei o Marinheiro que determinado herói se revoltou con- e têm filhos chama-
Esclarecido. tra a injustiça. Afrontava, com risco de dos Joana, Manuel e
vida, os tiranos. Roubava dos ricos para Isabel somos nós, ou
Dizia-me aquele dar aos pobres. Trata-se, é claro, do mí- a maioria dos nossos
Marinheiro, em con- tico Robim dos Bosques. As duas ideias: amigos, têm, no país
versa formal, mas sol- a vergonha que era fazer mal aos mais presente, muito pouca
ta, corrida, como só a fracos e a necessidade de afrontar os po- confiança. Expressam
consulta empática permite: derosos em defesa dos fracos ecoaram
- A tensão está alta. Como não haveria de estar? frequentemente o desalento, para não
– Afirmou conclusivamente o nosso Mari- dizer desespero, que o nosso Marinheiro
nheiro. E continuou: Esclarecido tão bem exemplifica…Muitos
-Tenho três filhos, a minha mulher trabalhava acrescentam (e eu tenho forte tendência
numa pequena empresa de brinquedos e minia- a concordar com eles…), que será bem
turas, que vai fechar. Dizem-me que aquilo que mais difícil afrontar os poderosos, que,
mesmo o que ganho vai obrigar a suspender o como outro ilustre marinheiro bem pôs,
abono de família dos meus filhos, tudo vai ficar normalmente “servem o país, servindo os
mais caro e, aqui, aqui não vão haver aumentos seus próprios interesses” (muitas vezes
durante muito tempo… absolutamente obscuros), numa simbiose
perversa com empresas de “grande inte-
Continuou após algum silêncio, pesa- resse estratégico nacional”…
do:
-Parece, sabe Doutor, que Portugal passou de Portugal nunca deixou de ser um país
repente a ser um país em que todos são ricos. eminentemente pobre – mesmo que a
Em que todos esbanjavam e ninguém trabalha- vasta rede de supermercados, hipermer-
va. Daí o castigo…Novo silêncio. cados e centros comerciais gigantescos
-”Toma–e–Embrulha”(…sorriu delicadamen- possa desorientar o menos atento – mar-
te…), quem já fazia um esforço para fazer com cado por uma profunda desigualdade so-
que as pontas de um lençol fino tapassem as cial, bem visível na prática médica, prin-
cipalmente urbana (sim, a maior parte
30 ABRIL 2011 • REVISTA DA ARMADA