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Dia da Marinha 2011

Aprimeira viagem de Vasco da Gama à               seu poiso abrigado. Sabemos, contudo, que o
         Índia tem para a Marinha Portuguesa      local foi frequentado por fenícios e que os ro-
         um sentido muito próprio, entendido      manos ali montaram uma profícua indústria
como o paradigma da missão cumprida plena-        de peixe salgado e garum, que exportavam
mente, apesar de todas as dificuldades que se     para outras regiões do império. A primitiva
lhe opunham. Os navios saíram de Lisboa por       Caetobriga, com centro urbano na margem
ordem do rei de Portugal, e alcançaram a costa    direita do Sado e um núcleo industrial em
hindustânica a 18 de Maio de 1498, fundeando      Tróia, remonta ao século I e manteve-se em ac-
perto de Calecut e chegando à fala com as gen-    tividade comprovada até ao século V, quando
tes locais, no dia 20 do mesmo mês. Nesse dia     as invasões bárbaras poderão ter provocado
20 uniram-se duas civilizações e abriu-se entre   a sua decadência. O período árabe revigora a
elas a rota do Cabo da Boa Esperança, inaugu-     vida marítima do rio, adaptada a uma outra
rando-se uma nova era para a humanidade.          realidade militar que obrigou a salvaguardar o
A Marinha escolheu esse dia simbólico para        núcleo urbano no interior (Alcácer do Sal), mas
fazer a sua festa, revivendo a missão de Vasco    mantendo uma vida marítima na foz, testemu-
da Gama, não de forma saudosista ou lauda-        nhada pela existência de estaleiros e intensa
tória, mas pelo que ela mostra da capacidade      actividade piscatória. A importância da barra
realizadora inerente aos seres humanos. Uma       do Sado, no flanco sul de Lisboa, deduz-se da
capacidade que reconhecemos na entrada do         forma vigorosa como o estuário foi defendido
século XVI português, e que não há nenhuma        pelos árabes, no século XII, obrigando a que a
razão para que não continue a existir, sempre     reconquista progredisse pelo interior, em direc-
que se encontre a força anímica própria. Esta     ção à bacia do Guadiana e deixando as praças
força deve ser o alvo da nossa busca, com a       litorâneas para uma fase posterior. Normal-
certeza absoluta de que ela existe, como o pro-   mente este processo da reconquista cristã da
vam as múltiplas realizações da Humanidade,       Península, no que ao espaço português diz res-
de que a viagem de Vasco da Gama à Índia é        peito, é vista como um simples avanço para sul,
apenas o exemplo que comemoramos todos            sem ter em conta a resistência no espaço litoral,
os anos a 20 de Maio.                             que os árabes quiseram manter a todo o custo.
                                                  O domínio (ou a liberdade) do mar ocidental –
     A festa anual da Marinha Portuguesa só       muito afectado depois da conquista de Lisboa
tem significado nacional se tiver lugar numa      (1147) – e a posse da foz do Sado foi para eles
comunhão estreita com as populações que vi-       mais importante que a defesa das praças do
vem viradas para o mar; parceiras da vocação      interior, desde Évora à bacia do Guadiana. E
marítima de um Portugal sem outro destino         esta limitação interpretativa prejudica a análise
que não seja esse espaço infindo, que hoje sabe-  estratégica da importância da costa ocidental,
mos ser depositário de um conjunto infindável     desde os primeiros tempos da nacionalidade,
de riquezas por explorar. E a cidade de Setúbal   e, sobretudo, obscurece a complementaridade
foi sempre um dos mais importantes portos         existente entre as barras do Tejo e do Sado, que
portugueses, de onde saíram milhares de ma-       se manterá por muitos séculos.
rinheiros que, desde sempre, foram o sustento
da nossa Marinha e de todas as actividades           É fácil perceber que o povoamento da pla-
ligadas ao mar.                                   nície de Setúbal só foi possível depois da con-
                                                  quista definitiva de Alcácer do Sal (1217) mas,
    Diz a lenda que, depois do grande dilúvio     a partir daí o núcleo desenvolveu-se de forma
de que se salvaram apenas os seres vivos res-     muito rápida e sempre virada para o mar. Teve
guardados na grande arca de Noé, foi Túbal –      foral, dado pelo Mestre da Ordem de Santiago,
neto do patriarca – quem aportou à Península      em 1229 e em 1343, D. Afonso IV definia o “ter-
Ibérica na barra do Sado e aí fundou a povoa-     mo de Setúbal”, para efeitos políticos, adminis-
ção que recebeu o seu nome. No apuramento         trativos e económicos. D. João I foi o rei por-
de factos concretos, as lendas valem de muito     tuguês que, de forma mais precoce e incisiva,
pouco, mas transmitem-nos os mitos criados        pensou uma estratégia de aproveitamento do
pela mente humana e as representações sociais     mar ocidental, reconhecendo a importância de
de grupos antigos que, neste caso, ligam a ci-    Setúbal, decretou que devia ser ajudada pron-
dade a uma fundação remota, levada a cabo         tamente (por Palmela, Sesimbra, Alcácer, Mon-
por alguém que veio do mar e ali encontrou o

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