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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA (6)
O Testemunho do Marinheiro Domingos Botelho
Este ano, em férias e por um acaso do é certo que nem todos os militares abraçam clara do papel dos militares na sociedade.
destino, visitei Idanha-a-Nova. Vila o ideal do serviço comum á nação, também Se estão a mais, extingam-se as instituições
bonita e arranjada, onde apetece viver é certo que a maioria dos marinheiros sofre militares. Se têm que ser reestruturados, pro-
e respirar o seu ar honesto e saudável. Parece desconfortos e sofrimentos, que os médicos ceda-se com dignidade. Se há sacrifícios a fa-
um pedaço de um Portugal antigo, esqueci- da Marinha bem conhecem. Não se exige, zer, decerto que os militares os aceitarão…O
do. Numa das suas ruas encontrei uma placa por exemplo, a um funcionário público que está errado, apresenta-se claro ao mais
cujo título - “ PELA PÁTRIA PRESENTES!” que abandone mulher e três filhos, por humilde marinheiro, é acarretar com uma
- me chamou a atenção. Evocava dois filhos meses ou anos, por vezes quase sem aviso imerecida culpa e estar sujeito a uma gritan-
da terra mortos na Guerra do Ultramar, de prévio, para cumprir uma qualquer comis- te ignorância nas palavras e nos actos…
entre os quais o Marinheiro Domingos Bote- são numa das ilhas, num navio, ou até em
lho – o herói desta história. lugares extremamente perigosos como o A ingratidão é um dos piores defeitos da
Afeganistão…Não se pede – concluiria cer- humanidade. Se pensarmos bem, no caso
Portugal, ao contrário de quase todos tamente o honroso Marinheiro Domingos vertente, também se denota uma latente
os outros países da Europa, dos quais o Botelho – a um funcionário público que dê ingratidão. Ainda se lembrarão alguns que,
Reino Unido é o paradigma, não tem a vida pela pátria...Esta “pequena” diferen- para o mal ou para o bem, foram os militares
a tradição de celebrar, digo melhor, re- ça entre as profissões parece pouco percep- que fizeram a revolução que possibilitou o
cordar os que deram tível à nossa classe dirigente, mas é clara aos
a vida pela pátria (… humildes e simples de espírito: classe a que regime democrático, em
como adequadamente me honro de pertencer… que agora vivemos. Outro
se apresentava na placa). dado adquirido é que a ig-
Ora, naquele mesmo dia “Não há dinheiro”- é voz comum. Con- norância educada é muitas
ouvi um discurso de tudo, para mim e para muitos dos simples vezes atrevida…tal como
um governante, muito de espírito, dois factos estão perfeitamente agora se tem visto…O
seguro de si próprio, claros. Se é evidente que existe depleção Marinheiro Domingos
que dizia sucintamente de dinheiros públicos (…o que terá que ser representa de certa forma
que os militares “como muito bem explicado, pois Portugal foi dos todas as contradições pre-
os outros funcionários países que mais recebeu dinheiro para o sentes no nosso país ao
públicos” (citação abso- desenvolvimento estrutural: “os fundos de longo do tempo em rela-
lutamente fiel), deviam adesão”, como eram conhecidos), é também ção à instituição castren-
sofrer as consequências por demais evidente a ausência de culpados se. Louvados quando são
da crise. Dias depois em pela desastrosa gestão da coisa pública, que entendidos como neces-
editorial de um semaná- até aqui nos trouxe. Ora é nesta lógica que sários. Ignorados quando
rio, reputado e sério, o aparentemente se encaixam bem os militares. alguns admitem a sua não
editorialista afirmava a Basta pensar que é muito mais fácil culpar necessidade.
incompreensão pelo fac- os “esbanjadores militares”, do que apontar
to de os militares “não o dedo aos verdadeiros responsáveis, que – A Marinha Portuguesa
aceitarem as condições lamenta-se profundamente – são políticos… é ainda uma carreira atra-
impostas aos outros ente para muitos. Aperce-
funcionários públicos” (nova citação ab- O Marinheiro Domingos e todos os que bi-me rapidamente disso
solutamente fiel). envergando a farda, ao longo da História de nas recentes inspecções
Portugal, fizeram pela pátria o último sacri- médicas para a admissão aos cursos da Es-
É aqui que entra o Testemunho do Ma- fício, exigem ao país actual uma definição cola Naval. Entusiasmei-me com a alegria
rinheiro Domingos Botelho. De certeza que, jovial de alguns cadetes, que só os muitos
no dia em que partiu, não se considerava um jovens conseguem transmitir. “É por esse
funcionário público: pois toda a gente sabe entusiasmo que este mundo ainda avança”
que os funcionários públicos – sem despri- – dizia-me um sensato camarada médico.
mor para aquela honrosa classe – não pegam Muitos vêm pela aventura, outros virão
em armas para cumprir os superiores desíg- pela segurança. Todos, eles e elas, trazem
nios do país. De certeza, ainda, que as perso- paixão e ideias novas. A seiva de qualquer
nalidades que o pretenderam homenagear, instituição viva.
pelo descerramento da placa, não se terão Ainda bem que tenho a alegria de acre-
referido a eles como funcionários públicos. ditar numa vida, para além da vida. Sinto
Seria uma falta de cultura atroz e um desres- assim, que lá de onde está o nosso falecido
peito inaceitável, mesmo para quem só teve camarada me inspirou. De certo modo, e da
a quarta classe, quanto mais para ministros única forma que consigo, este escrito com-
formados nas melhores universidades do pletará a homenagem ao Marinheiro Do-
país e do estrangeiro, ou ilustrados jorna- mingos Botelho, que decerto tinha uma mãe,
listas conhecedores profundos da realidade um pai e uma vida na bela vila de Idanha-a-
nacional…Admito mesmo que se qualquer -Nova, que lhe foi amputada. Consigo mes-
criança do ensino básico fizesse o mesmo mo imaginar o Sr. Marinheiro Domingos a
erro, seria certamente corrigida…. sorrir…e sabe o raro leitor atento destas mis-
sivas, o sorriso vence tudo. Vence a ingrati-
Na verdade esta ignorância “generaliza- dão, a intriga e até a vulgar mentira…
da” parece estranha, tão estranha que po-
demos até acreditar que é…propositada! Se Doc.
30 SETEMBRO/OUTUBRO 2011 • REVISTA DA ARMADA