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HIERARQUIA DA MARINHA						 14

                                           DESPENSEIRO

Apalavra despenseiro tem raiz              tificavam mais as funções do des-         são muito mais explícitos sobre a na-
          latina (dispensãre) e significa  penseiro.                                 tureza dos géneros embarcados: «Co-
          aquele que tem as funções                                                  nhecimento de Fernando Pelicano, des-
de distribuir ou repartir os géneros         A bordo, a distribuição e reparti-      penseiro da nau Santa Maria da Ajuda,
alimentares.                               ção dos géneros alimentares pelos         por que consta receber de Afonso Lopes,
                                           despenseiros era feita em rações,         almoxarife dos mantimentos de Cochim,
  Refere Carbonel Pico, em Termino-        por exemplo, cerca de 1,5 litros diá­     30 fardos de arroz, 300 côcos e 10 cháve-
logia Naval Portuguesa anterior a 1460,    rios para água e vinho, e 15 quilos       nas de manteiga, tudo para mantimento
(pp. 382), que a primeira referência       de carne salgada por mês. Ao des-         da gente da dita nau» (Maço 34 nº 83 25-
conhecida a este termo, como fazen-        penseiro também cumpria o abaste-         09-1512). Deste tipo de recibos pode
do parte da hierarquia da Marinha,         cimento do navio, como é evidente         depreender-se que ao despenseiro,
data de 2 de Março de 1456. A mes-         em vária documentação existente           tal como hoje acontece, para além de
ma autora também afirma que exis-          no Arquivo Nacional da Torre do           distribuir ou repartir os géneros ali-
tem outras referências anteriores,         Tombo (ANTT), relativa ao seu re-         mentares em rações e de abastecer o
mas ligadas à actividade dos des-          lacionamento com os almoxarifa-           navio, cabiam igualmente tarefas ad-
penseiros dos monarcas e dos in-           dos dos principais portos de apoio        ministrativas de prestação de contas.
fantes, das comunidades religiosas         às actividades marítimas nacionais:
e das casas muito ricas.                   «Mandado de Cristóvão da Gama para          Das funções identificadas pode de-
                                           que o Almoxarife de Ormuz dê ao des-      duzir-se com bastante certeza que,
  A actividade do despenseiro, ao          penseiro do galeão Santiago, Cristóvão    desde muito cedo, o despenseiro
serviço destas personalidades e en-        Gil, 20 mãos de arroz para mantimento     desempenhou funções relevantes na
tidades relevantes, estava ligada à        de oito canarins» (ANTT, Maço 135,        organização da vida de bordo. Cer-
distribuição e repartição dos géneros      nº 17, 03-08-1526).                       tamente que sempre distintas das
alimentares que se encontravam na                                                    que competiam aos técnicos náu-
despensa, da qual possuía a chave            Nesta documentação também se            ticos, mas que se enquadravam no
para evitar eventuais desmandos de         podem encontrar vários “conheci-          mesmo grupo de tarefas logísticas
outros serviçais. Nos navios, dada a       mentos” dos despenseiros a ates-          atribuíveis ao escrivão, ao meirinho
duração das viagens marítimas, as          tarem em como receberam géneros           e aos artífices de carpintaria, calafe-
más condições de acondicionamen-           alimentares: «Conhecimento de Simão       tagem e tanoaria.
to e preservação dos géneros alimen-       Martins, despenseiro da nau Santa Ma-
tares nos porões e paióis, bem como        ria do Paraíso, em como recebeu vários                                                       
a necessidade de abastecimento nos         géneros» (ANTT, Maço 135, nº 172,                              António Silva Ribeiro
portos demandados, ainda se jus-           13-09-1526). Alguns destes recibos
                                                                                                                                          CALM

VIGIA DA HISTÓRIA						                                                              41

EFEITOS DO MAR

Ésabido que o mar provoca, na              barcados vários presos condenados à       neamente fez entrega de uma porta-
       generalidade das pessoas, as re-    pena de degredo.                          ria régia em que lhe era concedido o
       acções mais dispares, enquanto                                                perdão pelo crime cometido e o au-
para uns os ajuda a relaxar, para ou-        Um desses degradados era Felicia-       torizava a desembarcar em qualquer
tros constitui motivo de crispação, se     no José da Costa que, pelo crime de       porto que quisesse. 
a uns lhes aumenta a capacidade de         falsificação de moeda,  seguia com
concentração a outros impede-os de o       destino a Moçambique sob pena de            Informou ainda que era igualmen-
fazer, a uns a sua capacidade criativa     morte se acaso se ausentasse daque-       te portador de uma carta do Meiri-
surge aumentada quando andam no            la colónia.                               nho Mor para o Vice-Rei do Brasil
mar enquanto a outros tal não se ve-                                                 na qual toda a situação era descrita. 
rifica, enfim, andar no mar não deixa        Apesar das más condições de
ninguém indiferente.                       transporte, bem piores do que já de si      Se é possível que, por efeito do
                                           deficientes da maioria dos tripulan-      mar, a capacidade inventiva do Fe-
  O episódio que hoje se divulga inse-     tes, a ação do mar ter-se-á feito sentir  liciano José tivesse sido aumentada,
re-se claramente no que atrás se dei-      na actividade levada a cabo pelo Fe-      o mesmo efeito não deverá ter tido
xou referido como facilmente se po-        liciano José que, pouco depois de ter     quanto à resistência física e à psíqui-
derá verificar.                            largado de Lisboa, terá feito chegar      ca pois, sujeito a interrogatório, rapi-
                                           ao Comandante uma carta que lhe           damente se soube estar-se na presen-
  Em 1779 o navio Neptuno, sob o           era destinada, alegadamente escrita       ça de meras falsificações.
comando do Capitão Tenente Dioní-          pelo Cardeal, na qual este lhe infor-
sio Ferreira Portugal seguiu viagem        mava ser o Feliciano seu afilhado e                                                          
para a Índia, com escalas previstas        lhe pedia que o protegesse especial-                                    Com. E. Gomes 
no Rio de Janeiro e em Moçambique          mente que não o juntasse no rancho
e, como era usual, nele seguiam em-        com os outros degredados. Simulta-        Fonte:
                                                                                        Arquivo Histórico Ultramarino doc. 9122

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