Page 30 - Revista da Armada
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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA (11)

  O cão de água português…
			 uma alegoria de Portugal

À minha avó dedico este escrito…                            havia cão perdido ou abandonado que ali não       atividades variadas, mas sempre ligadas ao
  “Só morrem, desaparecem de vez, as pes-                   encontrasse abrigo. Chegavam escanzelados,        mar... O escritor Raul Brandão, na sua obra
                                                            os ossos sob a pele faziam uma gaiolita arfante,  Os Pescadores (1932), descreve assim a ativi-
soas que não foram amadas…”                                 que continha um coração farto de maus tratos,     dade de um barco de pescadores do Algarve:
                                                            em que a fome parecia ser apenas o mais evi-      “Tripulavam-no vinte e cinco homens e dois
                               Zélia Gattai, Cittá di Roma  dente. Chegaram a ser quinze os cães naquela      cães (...) Era uma raça de bichos peludos, aten-
                                                            casa. Uns mais velhos, outros meros cachorros,    tos cada um a cada bordo, ao lado dos pesca-
Sempre gostei de animais. Cresci numa                       uns brancos, outros pretos, outros malhados, to-  dores. Fugia o peixe ao alar da linha, saltava
     quinta, antiga, daquelas que tinha va-                 dos bons cães… Com eles e com a minha avó         o cão ao mar e ia agarrá-lo ao meio da água,
     cas, porcos, cavalos e mulas e, sim, um                aprendi o valor da vida – já que muitas vezes     trazendo-o na boca para bordo (…)”
ou outro burro de quatro patas e orelhas gran-              depois de vender o gado naVila, ela me levava
des. Nessa quinta aprendi grandes lições, que               ao canil da Câmara Municipal. Aí de um mon-         A partir do século XX, com as novas tecno-
desafiavam a compreensão de uma criança.                    tão de olhares infelizes ela dizia, imperativa:   logias da pesca, o trabalho dos cães de água
Aprendi que podemos afogar até mesmo os                                                                       perdeu importância. O número de animais
patos se os mantivermos na água demasiado                     - Escolhe um destes (cães) para levarmos.       da raça diminuiu muito e na primeira me-
tempo; aprendi que tentar fazer carrocinhas                 Escolhe bem, pois só o que escolheres é que       tade daquele século os poucos exemplares
com carneiros e bodes era perigoso…pois eles                estará vivo amanhã…                               existentes restringiam-se ao Algarve. A raça
não são brinquedos, têm
vontade própria, investem e                                   Lembro-me então de um rapazito que, ape-                          só sobreviveu graças a al-
podem magoar…                                               quenado pela responsabilidade da escolha, lá                        guns (poucos) criadores e
                                                            escolhia um pintas, um ruca, ou qualquer ou-                        em particular quando al-
  Aprendi que os animais,                                   tro nome da moda…de então…                                          guns animais foram expor-
mesmo dentro da mesma                                                                                                           tados para o estrangeiro. No
espécie, têm espírito e são                                   Foi assim com imensa alegria que me depa-                         estrangeiro reconheceram-
todos diferentes uns dos ou-                                rei com um genuíno cão de água português.                           -lhe rapidamente as quali-
tros. Aprendi – e esta verda-                               Daqueles que agora são cães de resgate na-                          dades e adaptaram-no a to-
de vai fazer sorrir alguns dos                              val em França, ou estão na família do homem                         das as atividades marítimas,
leitores (os outros vão achar                               mais poderoso do mundo (o presidente ameri-                         desde o resgate marítimo,
que ensandeci de vez) - que                                 cano), mas que no seu próprio país estiveram                        ao trabalho, aquático, com
a galinha é um animal alta-                                 quase votados à extinção e ao abandono – e                          seres humanos deficientes
mente social, que reconhece                                 neste sentido são um ícone de como tratamos                         motores e ou mentais…nes-
a família e os seres humanos                                aquilo que é nosso, ou melhor, se quisermos,                        te particular, e nos Estados
que os tratam até ao dia em                                 da forma como nos tratamos a nós próprios…                          Unidos, foi com alegria que
que lhe apresentam a solu-                                                                                                      descobri que alguns destes
ção final (talvez a traição fi-                               Originalmente, o cão de água - excelente                          cães são usados para visitas
nal), na ponta de uma faca…                                 nadador - foi utilizado pelos pescadores por-                       a crianças gravemente doen-
para fora de um mundo que                                   tugueses como ajudante nos barcos, guiando                          tes internadas nos Hospitais.
nunca controlaram.                                          cardumes de peixes às redes, recuperando                            Parece que afagar o seu farto
                                                            objetos caídos na água, levando mensagens                           pelo sedoso diminui a ansie-
  Deixei, já há cerca de três                               entre barcos e entre a terra e o mar e noutras                      dade aos pacientes, diminui
anos, de comer carne – ex-                                                                                                      o seu sofrimento e cria sen-
ceto em situações em que o                                                                                    timentos positivos, que predispõem à recupe-
não comer daquele manjar ofende os outros                                                                     ração...Uma vez que temos uma tendência a
comensais, como, ocasionalmente, ocorre na                                                                    aceitar todas as ideias de fora como boas, tal-
Marinha. A decisão foi fundamentada também                                                                    vez, também aqui, esta fosse uma boa utiliza-
na ciência médica, já que, desengane-se o lei-                                                                ção para esta bela raça de cães…
tor, pouco vem de bom do consumo de carne                                                                       Tudo isto se deveu ao facto de ter conheci-
a partir da idade adulta. Essa decisão colocou-                                                               do um cão (melhor dito, uma cadela) de água
-me em paz com a minha consciência infantil.                                                                  que fez parte da guarnição do nosso lugre de
Aquela que me avisava de que aquele frango                                                                    quatro mastros, o “Creoula”. Não fiquei desi-
que eu ia atualmente comer – apesar de ter                                                                    ludido. Trata-se de um animal afável, prestá-
sido condenado a nascer e viver num aperta-                                                                   vel e um crédito para a Marinha e para Portu-
do aviário, onde a luz contínua não permite                                                                   gal. De algum modo, se meditarmos sobre o
distinguir o dia da noite e onde come farinhas                                                                assunto, as raças dos cães capturam parte da
obtidas das entranhas de outros animais e enri-                                                               alma do povo que os criou. Ainda bem – con-
quecidas com toda a sorte de químicos – tem                                                                   cordará o leitor – que somos no mundo repre-
as mesmas capacidades daquele outro galito                                                                    sentados por um animal como este, genero-
de antanho, que me saltava para o ombro e                                                                     so, empreendedor e, é claro, intrinsecamente
debicava, no boné de palha, a maçaroca seca,                                                                  ligado ao mar…
que eu lá havia escondido
                                                                                                                                                                 
  Naquela mesma quinta, a minha avó colecio-                                                                                                              Doc
nava os meus animais favoritos…Os cães. Não
30 MARÇO 2012 • REVISTA DA ARMADA
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