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REFLEXÃO ESTRATÉGICA						                                                                             5

A visão estratégica e holística

                                   do uso do mar
No passado os oceanos eram comum-
        mente entendidos como uma fonte             sobre a respectiva plataforma continental, até à   mensão dos desafios marítimos actuais. Assim
        inesgotável de recursos, capaz de resis-    profundidade de 200 metros. Este regime foi re-    é porque, embora cada uma das referidas ca-
tir a todos os abusos dos utilizadores, e como      forçado em 1982, com a assinatura da Conven-       pacidades possua grande relevância individual,
via privilegiada de comunicações, livre de res-     ção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar       não chega, por si só, para garantir o uso do mar
trições impostas pelos interesses do Estado cos-    (CNUDM), que fixou os limites do mar territorial   numa conjuntura internacional, onde as amea-
teiro. Durante séculos, apesar dos problemas        nas 12 milhas a partir das linhas de base recta,   ças e as oportunidades marítimas se misturam e
decorrentes dos actos de pirataria e dos riscos     e criou as Zonas Económicas Exclusivas até às      relacionam de forma inextricável e imprevisível.
associados à poluição ambiental e às catástrofes    200 milhas.Também estabeleceu as normas do         Na realidade, cada uma daquelas capacidades
naturais, as espécies piscícolas abundaram, os      Direito Internacional para a concretização das     marítimas especializadas, apenas proporciona
resíduos lançados ao mar criaram apenas difi-       pretensões do Estado costeiro estender a sua pla-  acções sectoriais diferenciadas, cuja utilidade,
culdades locais e temporárias, as orlas costeiras   taforma continental a distâncias da costa que po-  em termos das políticas públicas do Estado cos-
não sofreram impactos relevantes, a navegação       dem ser superiores às 350 milhas.                  teiro, é incomparavelmente menos relevante
fez-se sem quaisquer limitações e a protecção                                                          que a resultante da adopção da visão holística,
do património cultural não constituiu uma pre-        As extensões das plataformas continentais tor-   potenciadora da actuação multidisciplinar e in-
ocupação. Foi neste contexto que, no início do      naram evidentes que, no século XXI, a concep-      tegrada de tais capacidades.
século XVII, ultrapassada a diver-                  ção e a concretização do uso do mar, exigem
gência doutrinária entre os par-                    a adopção de uma visão estratégica e holística,      Nestas circunstâncias, só uma visão estratégi-
tidários dos princípios do mare                     essencial para que o Estado costeiro possa, em                   ca e holística do uso do mar pode
clausum e do mare liberum, se                       simultâneo: dispor do cimento conceptual im-                     proporcionar aos diferentes secto-
afirmou o conceito de liberda-                      prescindível à preparação e ao emprego do seu                    res do Estado costeiro uma idênti-
de dos mares, baseado na visão                      poder na preservação dos interesses marítimos                    ca percepção das ameaças e das
idealista de que o exercício do                     nacionais; e disfrutar da integração das capaci-                 oportunidades marítimas e, em
direito do seu uso por parte de                     dades multidisciplinares e especializadas nas                    simultâneo, favorecer o desenvol-
uma entidade, dificilmente acar-                    áreas política, económica, ambiental, cultural                   vimento de um esforço conjunto e
retaria a violação dessa mesma                      e securitária de actuação no mar.                                concertado, baseado num sentido
prerrogativa por parte de outros                                                                                     de partilha de responsabilidades,
usufrutuários.                                        Para o Estado costeiro, a premência da visão                   numa atitude de permanente aber-
                                                    estratégica do uso do mar, justifica-se pelo fac-                tura e de uma postura de constante
  A única excepção que o con-                       to de esta despertar a mentalidade, reforçar a                   determinação, tendo em conta os
ceito de liberdade dos mares ad-                    vocação e mobilizar a vontade marítima dos                       respectivos meios, mandatos, fun-
mitiu, prendeu-se com a defini-                     cidadãos, para identificar e defender os seus in-                ções e autonomia no processo de
ção de uma jurisdição marítima confinada às         teresses marítimos, e para edificar, organizar e                 tomada de decisão relativamente
necessidades de defesa do Estado costeiro. Para     empregar todas as capacidades do país nas ac-
isso, foi estabelecida uma faixa de três milhas     ções que, centradas no mar, contribuem para o      às matérias e actividades relacionadas com o
de largura ao longo da costa, cujo limite exte-     seu desenvolvimento e segurança. Porém, a ac-      mar. Para isso, como as competências marítimas,
rior se designava por “linha de respeito”, que      tual visão estratégica do uso do mar não pode      na generalidade dos Estados costeiros, estão re-
correspondia, aproximadamente, ao alcance           continuar focalizada apenas na preparação e        partidas por diversos departamentos públicos,
máximo de um canhão no século XVIII. Nessa          no emprego das capacidades políticas e secu-       é necessário criar, fortalecer e dinamizar os ór-
estreita bordadura, designada por mar territorial,  ritárias, que prevaleceram na actuação marítima    gãos de diálogo, de fomento de confiança e de
ganhou expressão o costume do Estado costeiro       do Estado costeiro durante o século passado. A     tomada de decisão, focalizando-os no estabe-
ser o único titular de soberania, com legitimi-     globalização e as disputas em torno dos interes-   lecimento de parcerias e no desenvolvimento
dade exclusiva para afirmar a autoridade. Em        ses marítimos dos Estados costeiros implicam,      de sinergias entre todos os agentes envolvidos.
toda a restante área, o mar foi entendido como      agora, o contributo adicional das capacidades      Neste contexto, é especialmente relevante: a ar-
um bem não apropriável por nenhum Estado.           económica, ambiental e cultural, integradas no     ticulação do planeamento estratégico das capa-
                                                    contexto de uma visão holística do uso do mar,     cidades públicas marítimas; a partilha de meios,
  Após a II Guerra Mundial, as crescentes neces-    fulcral para se poder fazer face à verdadeira di-  saberes, experiências e competências; e a coor-
sidades de recursos naturais, sobretudo energé-                                                        denação e colaboração na actuação dos dife-
ticos, das economias pujantes, e os rápidos pro-                                                       rentes departamentos públicos. Na consecução
gressos da ciência e da tecnologia, fomentaram                                                         destes três proeminentes propósitos, o cimento
o início da corrida ao mar, anulando, progres-                                                         conceptual proporcionado pela abordagem es-
sivamente, a visão idealista do uso do mar, por                                                        tratégica e a integração das capacidades resul-
esta já não traduzir a realidade da actuação do                                                        tante da abordagem holística, têm uma função
Estado costeiro. Uma consequência substantiva                                                          decisiva, porque só ligando e dinamizando to-
desta corrida ao mar, em que oTratado de Pária                                                         dos os vectores de acção marítima do Estado
(1942) assumiu um papel preponderante como                                                             costeiro, se viabiliza o seu uso na justa medida
iniciador de uma nova realidade, verificou-se em                                                       dos interesses de cada país.
1958, com a realização da conferência de Gene-
bra. Nela foram reconhecidos os direitos sobe-                                                                                                            
ranos do Estado costeiro sobre o mar territorial,                                                                                 António Silva Ribeiro
até ao limite máximo de 12 milhas da costa, e
                                                                                                                                                              CALM

                                                                                                       N.R.
                                                                                                       O autor não adota o novo acordo ortográfico.

4 AGOSTO 2012 • Revista da Armada
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