Page 31 - Revista da Armada
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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA (27)
Um Mundo Novo...
… De joelhos no chão, Duarte anunciou mento. Que é preciso dar tempo, ao tempo…. A ex-funcionária civil de um dos Ramos das
que terminara de preparar a sua armadilha. Um Velho Marinheiro apitava atrás de mim Forças Armadas, mas casada com um ex- Ma-
Talvez se tenha esmerado na preparação. rinheiro, Cabo antigo, meu antigo conhecido,
Talvez o fio estivesse tão bem camuflado que já no recinto do HFAR. Saí do carro apressa- entrou na consulta de cardiologia. Senhora
nem o próprio o viu. Ao levantar-se, o furriel damente, pensei tratar-se de uma emergência. de cerca de 70 anos, lábios muito pintados,
tocou com o joelho no fio. Teve então milési- Não, não havia qualquer emergência médica, pele branca disfarçada sob uma maquilhagem
mos de segundo para tomar uma decisão de a emergência era de outra natureza. Um ho- exuberante. Estava visivelmente irritada, afinal
vida (a sua) ou morte (dos três camaradas)… mem já idoso, demasiado pequeno para o seu era vista por outro médico (um médico civil,
imponente carro, queria passar rapidamente, do mesmo Ramo em que trabalhara), que não
In “Heróis do Ultramar”, Nuno Castro, edi- e eu aguardava o estacionamento de alguém, conseguia contactar. Queixava-se de uma
ção Oficina do Livro, 20121 do mesmo grupo etário, que insistia em colo- depressão agora agravada, segundo as suas
car no único lugar com sombra, o seu velho próprias palavras, pelo falecimento recente e
Não há dúvida para ninguém, temos acon- carro…Impedia-lhe a passagem. O nosso súbito do marido. Marcou consulta para mim
tecimentos agora no nosso país que são fon- marinheiro tinha medo de não ter lugar no pois tinha fama de médico “sensível e atencio-
te de inúmeras histórias, pela surpreendente recinto. Afinal “da última vez, também numa so”. Referia insónia e queixas muito sugestivas
novidade dos comportamentos, imposta segunda-feira”, tinha dado voltas e voltas, sem do agravamento do seu mal-estar psíquico.
pela rapidez das mudanças…Os militares, encontrar estacionamento. Acabou por colo- A ficha apresentava uma pletora de exames
particularmente os militares na saúde, estão car o seu carro num outro qualquer lugar, que do foro de cardiologia, todos dentro da nor-
na linha da frente da mudança na Instituição lhe terá parecido adequado. Foi a uma consul- malidade, para a idade da paciente. O mé-
Militar. Na verdade, digo-o com a certeza ta. Quando chegou encontrou uma fita ama- dico anterior já a havia medicado com um
que a experimentação quotidiana permite. rela e uma “multa/aviso” no vidro. antidepressivo potente. Consequentemente,
Nenhum processo de fusão – no meio mi- aconselhei consulta de Psiquiatria, uma vez
litar - se afigura tão exigente, nem imprimiu Aconselhei calma. Depois reparei que no que do meu foro pouco havia a fazer…
tantas inovações…A Marinha…porventura antebraço tinha uma tatuagem barata e carco-
o Ramo que mais lutou contra a integração, mida no braço. Um coração infantil ostentava A relação médico-doente (a essência do
sofre agora uma mudança profunda…As se- “Amor de Mãe” e em letras ainda mais gastas, ato médico) acabou imediatamente. A se-
guintes são três pequenas histórias que são mais abaixo “Guiné 71”. Lembrei-me então nhora passou o tempo restante a criticar
sinais desta situação… dos muitos ex-combatentes do ultramar que já os atuais médicos (militares…) do HFAR.
conheci...Muitos trazem fantasmas profundos Seguidamente, proferiu injúrias várias con-
Um respeitado médico da área cirúrgica é de guerra (recordações dolorosas de episódios tra a Psiquiatria em geral e os médicos psi-
o alvo desta história inicial. Sou amigo dele dramáticos como o referido acima, na intro- quiatras em particular…Também não tinha
há muito tempo. Divide agora o seu tempo dução deste texto), esquecidos no seu ser pro- gostado nada de mim. Afinal, eu tinha reco-
entre o Centro de Medicina Naval (CMN), fundo, aguardam dias assim para sair…da pior mendado um psiquiatra e ela, obviamente,
entidade vocacionada para os cuidados de forma…Já não forneci mais conselhos. Pura e não era pelas suas próprias palavras “ne-
saúde primários e o Hospital das Forças Ar- simplesmente afastei-me. nhuma maluca…”.
madas (HFAR). No CMN executa tarefas para
as quais não está vocacionado (…afinal foi Não sei o que lhe sucedeu, espero que tenha Ouvi calado, mas custou-me a alegria do
preparado para a atividade hospitalar). No conseguido paz e um lugar para estacionar… momento com que sustento a minha exis-
HFAR tem dificuldade em cumprir as suas Longe, muito longe, da ansiedade que o ator- tência...
atividades cirúrgicas…Existem várias razões, mentava naquela fatídica segunda-feira…e
segundo ele, para esta situação. Algumas de dos seus íntimos fantasmas… Parece-me, nestes dias, em que aconteceu
ordem exclusivamente médica: normalmente a transição do 80 para o 8, muito há ainda
marca-se a intervenção cirúrgica para determi- por fazer, como documentam estes episódios,
nado dia, sendo fundamental seguir o doente que não parecem mais do que manifestações,
nos dias imediatos. Aquele desiderato parece pessoais, de sofrimento…Neste tempo de mu-
difícil, dada a permanência, em tempo parcial dança, acredito que em cada milionésimo de
no HFAR. Por outro lado, as exigências atuais e segundo somos obrigados a orientar o sentido
organização presente do HFAR (marcações de da nossa vida entre a entropia do presente e a
consultas, etc), estão ainda a adaptar-se a quem esperança um futuro racional, compreensível
tem estas obrigações, digamos, em duplica- para a maioria, que se aguarda…Será, verda-
do…Compreensivelmente, é difícil gerir pessoas deiramente, um “Mundo Novo”…
em duas instituições distintas, em processos tão
normais como, por exemplo, as férias, que são Doc
dependentes da unidade naval, de base…
Notas
No CMN, Unidade que conheço bem2, tam- 1 Livro recomendado a quem se interessa pela
bém será difícil gerir a vasta atividade clínica, história militar recente, em especial, a quem
inspetiva, sem o apoio de muitos médicos… se interessa pela história da Guerra Colonial.
Como, por tradição acontecia com o antigo 2 De 2005 ao final de 2011.
Hospital…O cirurgião em questão quer sair.
Quer acabar o seu tempo nas fileiras…Não Correcção
é o primeiro, da sua geração, que me aborda Por lapso, na RA nº 477 as Novas Histórias da
neste sentido. Disse-lhe o mesmo que aos ou- Botica sairam com a numeração incorrecta.
tros, que o processo de fusão estava em cresci- Onde se lê (27) deverá ler-se (26), tal como
referido no sumário.
REVISTA DA ARMADA • SETEMBRO-OUTUBRO 2013 31