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REVISTA DA ARMADA | 487

  Fernão Mendes menciona essa prática por parte do seu com-              … nos deu hum tempo de Norte tão rijo, que com a vaga
panheiro António de Faria. Após ter derrotado um corsário mu-         dos mares cruzados, & co grande escarceo que o mar leuã-
çulmano que operava na região da ilha de Ainão, Faria assumiu         tou, nos abrio o junco pela roda de proa; pelo qual nos foy
esse papel de corsário no mesmo espaço. O sistema de corso le-        forçado alijar o conuès, & corrẽdo assi aquella noite a aruo-
vado a cabo pelos Portugueses previa a existência de uma pro-         re seca, sem mostrar ao vento hum só palmo de vella, por
teção assegurada a todos aqueles que pretendessem navegar li-         serem insofriueis as refegas que a miude o tempo de sy lan-
vremente no espaço controlado pelo corsário. Para tal recebiam        çaua, viemos com assaz de trabalho atê meyo quarto dalua
um «cartaz» mediante o pagamento de certa quantia. Esse cartaz        rendido, em que supitamente se nos foy o junco fundo, sem
garantia ao seu possuidor que não seria atacado pelos Portugue-       delle se saluarem mais que estas vinte & tres pessoas que
ses, mas obrigava-o também a não molestar estes. O cartaz era         nos aquy vedes, de cento & quarẽta & sete que nelle vinha-
passado em nome do Necodá, o capitão do navio:                        mos. E ha ja quatorze dias que andamos sobre estes paos,
                                                                      sem em todos elles comermos mais que hũ cafre meu que nos
     E querendo Antonio de Faria aproueitar hum moço seu que          falleceo, cõ que todos nos sustẽtamos oito dias, & inda esta
  chamauaõ Costa, o fez escriuão dos cartazes que se auião de         noite nos falleceraõ dous Portugueses que não quisemos co-
  dar aos Necodás, a que logo taxou o preço, o qual auia de           mer, tẽdo disso bem de necessidade, porque sem duuida nos
  ser aos dos juncos cinco taeis por cartaz, & aos dos vancoẽs,       pareceo que oje ate a menham acabassemos cõ a vida estes
  & lanteaas, & barcaças, dous, [...] Seguro debaixo de minha         miseraueis trabalhos em que nos viamos [LII].
  verdade ao Necodà, foaõ, paraque possa nauegar liuremen-
  te por toda a costa da China, sem ser agrauado de nenhum            Destaca o facto de os náufragos terem comido um cafre, que
  dos meus, cõ tanto que onde vir Portugueses os trate como         morrera. E realça que tendo morrido dois Portugueses não foram
  irmãos, & assinauase ao pè, Antonio de Faria [LII].               capazes de os comer, apesar de sentirem uma enorme necessida-
                                                                    de de se alimentarem. Este registo de Fernão Mendes Pinto não
  Naufrágios – Navios operando em situações de combate ou em        é completamente inédito. Na História Trágico-marítima também
mares alterosos estão sujeitos a naufrágios. Nalguns casos exis-    aparece a referência ao canibalismo. E também aqui se nota bem
tiam sobreviventes que acabavam por chegar a terra ou por ser       a necessidade de realçar o caráter excecional da situação. Apenas
recolhidos no mar. Em várias destas situações são conhecidos re-    se menciona a situação de terem comido cafres. E mesmo essa
latos que nos permitem conhecer as dificuldades por que pas-         circunstância merecia reprovação:
saram aqueles que sobreviveram. A História Trágico-marítima é
compilação levada a cabo por Bernardo Gomes de Brito, no sécu-           Em determinadas situações os autores vincam que os portu-
lo XVIII. Nela reuniu doze relatos de naufrágios, das muitas deze-    gueses descem a um nível inferior ao dos nativos. É o que aconte-
nas que circulavam, geralmente na forma impressa.                     ce, em especial, na Relação do Naufrágio da Nau São Bento, que
                                                                      relata actos de canibalismo e intenções de canibalismo por parte
  Fernão Mendes também passou por situações de naufrágio,             dos portugueses, embora sempre justificados pela fome: “[qua-
várias vezes. Além disso, encontrou outros náufragos no mar, a        tro portugueses] constrangidos da fome, tomaram um cafre que
quem recolheu. Gente que viveu em condições extremas, teve            toparam ao longo do mar e, metendo-se com ele em um mato, o
também comportamentos que se desviam dos padrões moral-               esquartejaram e assaram para fornecerem os alforges (...) [Mais
mente aceites na época. O canibalismo é um desses comporta-           tarde, tendo capturado um outro nativo] constrangeu a neces-
mentos. Condenados pela moral judaico-cristã, os atos antropo-        sidade a muitos serem de parecer que comêssemos a esse cafre
fágicos eram associados geralmente a alguns povos selvagens,          e, segundo se já soava, não era a primeira vez que a desventura
que viviam completamente fora das normas civilizacionais. O au-       daquela jornada chegara a alguns a gostarem de carne humana,
tor da Peregrinação não se coíbe de relatar uma situação de cani-     mas o capitão não quis consentir” [Sousa, 2007: 21].
balismo, de que tomou conhecimento:

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