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ESTÓRIAS 34
ZÉ GOMES
Zé Gomes era Marinheiro Fogueiro do tempo em que,
O para essa especialidade, apenas era exigida uma boa Foto do autor
compleição física. Assim era, pois que as caldeiras a carvão,
sempre esfomeadas, exigiam muito esforço muscular para
alimentar as suas insaciáveis bocas (fornalhas).
Conheci-o quando embarquei no NRP Vouga, em dezem-
bro de 1945. Tinha eu 20 anos e acabara de ser alistado
no Corpo de Marinheiros, 2ª Brigada (mecânicos), como
cabo artífice torpedeiro electricista. O Vouga foi o meu pri-
meiro navio, o que jamais será esquecido. Tudo era novo
para mim: o ambiente de bordo, os deveres, a responsabi-
lidade, a camaradagem. Pouco a pouco fui conhecendo o
navio, a guarnição e, naturalmente, o Zé Gomes. Desde logo
a minha grande simpatia e respeito por este veterano de
quarentas e tais, de cabelo branco à escovinha. O facto de
sermos “asilantes” (os que permanecem a bordo por não
terem alojamento em terra), permitia-nos longas conversas
na cozinha, à noite, aproveitando o calor remanescente do fogão. levar. Só que o 1TEN Décio Braga da Silva, oficial Imediato do navio,
Conta que era transmontano e as voltas da vida atirara-o para estas tinha outras ideias e, fazendo jus ao seu humanismo, possuindo a
casas. Começara como grumete, chegador (tira o carvão da pilha qualidade de não se sentir superior respeitando o homem pelo que
ou paiol e fá-lo chegar ao fogueiro, fangas sem conta, remoção das ele é, agiu de acordo com a sua consciência e decidiu o que nenhum
cinzas, as limpezas, etc.).Promovido a 1MAR, por aqui ficou. Regulamento, Código ou Ordenança prevê: prestar honras a um
“Não me queixo”, dizia. “Há quem diga que foi uma escolha que homem simples, sem feitos e, no caso, seu subordinado. E fê-lo.
tomei. Qual quê! A escolha é para quem pode escolher”. Referindo- Como? Mandou atracar o “gasolina” ao portaló de BB e ordenou ao
-se aos navios por onde andara dizia: “Não há comparação. Aqui, patrão que pusesse panos (tecido azul debruado com galão branco
neste navio, em vez da pilha de carvão e muito suor, só com uma e reservado a oficiais). Entretanto, junto aos vergueiros, sargentos
simples válvula, amanda-se a nafta para o pulverizador. E olhos no e praças aguardavam para se despedirem do Zé Gomes. Num gesto
manómetro”. Mais dizia da ventilação forçada para as caldeiras; da espontâneo de camaradagem, o cabo de Manobra, Ventura, da sua
casa das máquinas, a principal e as auxiliares, as turbinas, os telefo- idade, pegou no chouriço (maca) já com a mochila e levou-o, às cos-
nes, e por aí fora nas comparações. Era um prazer ouvi-lo. Irradiava tas, até ao “gasolina”. O Imediato, no patim superior, tinha atrás de
simpatia, simplicidade. si o chefe do Serviço de Máquinas, Engº Maq. Naval, 2TEN Delgado,
O Zé Gomes estava no Vouga desde 1940. Estivera no cruzador o Oficial de Dia, TEN Câmara, o 3º de máquinas (2TEN S. G.) e mais
Vasco da Gama, na Limpopo e na Zaire. Como homem e como pro- oficiais, cujos nomes já se me varreram da memória, para se despe-
fissional era respeitado por todos os seus camaradas e também, o direm do Zé Gomes, manifestamente desalentado e confuso com
que era notório, por sargentos e oficiais. tal distinção.
Amarrados à bóia no “Quadro dos Navios de Guerra”, frente ao Já na praça da embarcação o Zé Gomes, de pé, fez uma tímida
Terreiro do Paço. continência de despedida que foi demoradamente correspondida
Como habitualmente e pela manhã, atraca o “rebocador do arse- pelo nosso Imediato. Assim partiu, mantendo-se sempre de pé,
nal” que acorre a todos os navios no Quadro trazendo as licenças, acenando com o boné… até que, já perto da doca, uma falua que
o pessoal da taifa com as compras, o pessoal destacado e respeti- descia o rio com suas velas latinas cheias, se interpôs no horizonte.
vas mochilas, as ordenanças com as suas pastas bem identificadas E nunca mais, na minha vida, vi o Zé Gomes. Ainda hoje, retenho
(nome dos seus navios em letras de latão), onde traziam a corres- na minha memória essas figuras distintas: a de um amigo analfa-
pondência e a Ordem (Ordem da Armada). beto, humilde por circunstâncias da vida e a de um distinto oficial,
Um dia, “há sempre um dia”, vem na Ordem o destacamento do também humilde, mas por virtude de uma elevada cultura.
Zé Gomes. Choque brutal. Foi difícil convencê-lo que tinha de ir Lembro-os com igual admiração e respeito.
embora, sendo necessária a intervenção do nosso Imediato. Argu- Remato esta estória citando, a propósito, o poeta algarvio João
mentava o Zé Gomes que não tinha pedido para sair do navio. Con- de Deus
trapunha o Imediato que lamentava mas era algo superior a que “Quem teve a grande desgraça
tinha de dar cumprimento. Bastante consternado, perguntava o Zé De não aprender a ler
Gomes: “Vou para terra fazer o quê? Não há caldeiras em terra!” Era Sabe só o que se passa
compreensível o seu desalento, a sua revolta dorida. No lugar onde estiver”
Passou o almoço sem nele tocar. Já com a maca ferrada (enrolada) Com muitas saudades do mar,
envolvendo o saco mochila, onde acomodara toda a sua “mobília”,
roupa interior, a farda branca e a de cotim, fato de macaco, pala- Teodoro Ferreira
menta (prato e caneca de alumínio, colher, faca e garfo), as impres- 1TEN SG REF
cindíveis chanatas, etc., o Zé Gomes aguardava o rebocador para o N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico
28 SETEMBRO/OUTUBRO 2017