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REVISTA DA ARMADA | 522


          ESTÓRIAS                                                                                         34


          ZÉ GOMES





             Zé Gomes era Marinheiro Fogueiro do tempo em que,
         O  para essa especialidade, apenas  era exigida uma boa                                                   Foto do autor
          compleição física. Assim era, pois que as caldeiras a carvão,
          sempre esfomeadas, exigiam muito esforço muscular para
          alimentar as suas insaciáveis bocas (fornalhas).
           Conheci-o quando embarquei no NRP Vouga, em dezem-
          bro de 1945. Tinha eu 20 anos e acabara de ser alistado
          no Corpo de Marinheiros, 2ª Brigada (mecânicos), como
          cabo artífice torpedeiro electricista. O Vouga foi o meu pri-
          meiro navio, o que jamais será esquecido. Tudo era novo
          para mim: o ambiente de bordo, os deveres, a responsabi-
          lidade, a camaradagem. Pouco a pouco fui conhecendo o
          navio, a guarnição e, naturalmente, o Zé Gomes. Desde logo
          a minha grande simpatia e respeito por este veterano de
          quarentas e tais, de cabelo branco à escovinha. O facto de
          sermos “asilantes” (os que permanecem a bordo por não
          terem alojamento em terra), permitia-nos longas conversas
          na cozinha, à noite, aproveitando o calor remanescente do fogão.   levar. Só que o 1TEN Décio Braga da Silva, oficial Imediato do navio,
          Conta que era transmontano e as voltas da vida atirara-o para estas   tinha outras ideias e, fazendo jus ao seu humanismo, possuindo a
          casas. Começara como grumete, chegador (tira o carvão da pilha   qualidade de não se sentir superior respeitando o homem pelo que
          ou paiol e fá-lo chegar ao fogueiro, fangas sem conta, remoção das   ele é, agiu de acordo com a sua consciência e decidiu o que nenhum
          cinzas, as limpezas, etc.).Promovido a 1MAR, por aqui ficou.  Regulamento,  Código  ou  Ordenança  prevê:  prestar  honras  a  um
           “Não me queixo”, dizia. “Há quem diga que foi uma escolha que   homem simples, sem feitos e, no caso, seu subordinado. E fê-lo.
          tomei. Qual quê! A escolha é para quem pode escolher”. Referindo-  Como? Mandou atracar o “gasolina” ao portaló de BB e ordenou ao
          -se aos navios por onde andara dizia: “Não há comparação. Aqui,   patrão que pusesse panos (tecido azul debruado com galão branco
          neste navio, em vez da pilha de carvão e muito suor, só com uma   e reservado a oficiais). Entretanto, junto aos vergueiros, sargentos
          simples válvula, amanda-se a nafta para o pulverizador. E olhos no   e praças aguardavam para se despedirem do Zé Gomes. Num gesto
          manómetro”. Mais dizia da ventilação forçada para as caldeiras; da   espontâneo de camaradagem, o cabo de Manobra, Ventura, da sua
          casa das máquinas, a principal e as auxiliares, as turbinas, os telefo-  idade, pegou no chouriço (maca) já com a mochila e levou-o, às cos-
          nes, e por aí fora nas comparações. Era um prazer ouvi-lo. Irradiava   tas, até ao “gasolina”. O Imediato, no patim superior, tinha atrás de
          simpatia, simplicidade.                             si o chefe do Serviço de Máquinas, Engº Maq. Naval, 2TEN Delgado,
           O Zé Gomes estava no Vouga desde 1940. Estivera no cruzador   o Oficial de Dia, TEN Câmara, o 3º de máquinas (2TEN S. G.) e mais
          Vasco da Gama, na Limpopo e na Zaire. Como homem e como pro-  oficiais, cujos nomes já se me varreram da memória, para se despe-
          fissional era respeitado por todos os seus camaradas e também, o   direm do Zé Gomes, manifestamente desalentado e confuso com
          que era notório, por sargentos e oficiais.          tal distinção.
           Amarrados à bóia no “Quadro dos Navios de Guerra”, frente ao   Já na praça da embarcação o Zé Gomes, de pé, fez uma tímida
          Terreiro do Paço.                                   continência de despedida que foi demoradamente correspondida
           Como habitualmente e pela manhã, atraca o “rebocador do arse-  pelo nosso Imediato. Assim partiu, mantendo-se sempre de pé,
          nal” que acorre a todos os navios no Quadro trazendo as licenças,   acenando com o boné… até que, já perto da doca, uma falua que
          o pessoal da taifa com as compras, o pessoal destacado e respeti-  descia o rio com suas velas latinas cheias, se interpôs no horizonte.
          vas mochilas, as ordenanças com as suas pastas bem identificadas   E nunca mais, na minha vida, vi o Zé Gomes. Ainda hoje, retenho
          (nome dos seus navios em letras de latão), onde traziam a corres-  na minha memória essas figuras distintas: a de um amigo analfa-
          pondência e a Ordem (Ordem da Armada).              beto, humilde por circunstâncias da vida e a de um distinto oficial,
           Um dia, “há sempre um dia”, vem na Ordem o destacamento do   também humilde, mas por virtude de uma elevada cultura.
          Zé Gomes. Choque brutal. Foi difícil convencê-lo que tinha de ir   Lembro-os com igual admiração e respeito.
          embora, sendo necessária a intervenção do nosso Imediato. Argu-  Remato esta estória citando, a propósito, o poeta algarvio João
          mentava o Zé Gomes que não tinha pedido para sair do navio. Con-  de Deus
          trapunha o Imediato que lamentava mas era algo superior a que   “Quem teve a grande desgraça
          tinha de dar cumprimento. Bastante consternado, perguntava o Zé    De não aprender a ler
          Gomes: “Vou para terra fazer o quê? Não há caldeiras em terra!” Era   Sabe só o que se passa
          compreensível o seu desalento, a sua revolta dorida.  No lugar onde estiver”
           Passou o almoço sem nele tocar. Já com a maca ferrada (enrolada)   Com muitas saudades do mar,
          envolvendo o saco mochila, onde acomodara toda a sua “mobília”,                                     
          roupa interior, a farda branca e a de cotim, fato de macaco, pala-                         Teodoro Ferreira
          menta (prato e caneca de alumínio, colher, faca e garfo), as impres-                         1TEN SG REF
          cindíveis chanatas, etc., o Zé Gomes aguardava o rebocador para o   N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico


          28  SETEMBRO/OUTUBRO 2017
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