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REVISTA DA ARMADA | 522
VI(R)VER O MAR
PARTE III – A CHINA
DA LUA CHEIA À LUA NOVA Enquanto na Europa, nos séculos XV e XVI, existiam numerosos
reinos que rivalizavam politicamente e competiam comercial-
comum ler em numerosas publicações ou ouvir em muitos fora mente entre si e com o mundo muçulmano, o Império Chinês
É que Portugal entrou primeiro no Oceano Índico e depois no constituía, há séculos, uma unidade política. No continente euro-
Oceano Pacífico, com navios à vela adaptados a viagens de longo peu, Colombo e Magalhães puderam oferecer os seus préstimos
curso, armados com peças de fogo, conduzidos e manobrados a mais de um rei; era possível contratar ou sequestrar estrangei-
por pessoal experiente em assuntos do mar, i.e., munido de um ros para ensinar navegação e cartografia e comandar expedições
conjunto de técnicas, táticas e procedimentos “com um avanço de marítimas. Já os experientes navegadores chineses não tinham
quase cem anos em relação ao resto do mundo”. Nada de mais mais nenhum reino nas proximidades a quem oferecer os seus
errado, pois Portugal foi encontrar, nesses dois oceanos, um vazio préstimos e solicitar financiamento para as suas viagens; ainda
estratégico apenas resultante do fecho da China sobre si mesma. por cima era mal tolerado o prestígio dum almirante, advindo do
Cerca de um século antes, os navios chineses, alguns de porte poder que exercia sobre os seus marinheiros.
e valor militar bem superior ao dos utilizados por Portugal, sulca- Este “abandono” do mar revelou-se nefasto de 1839 em diante
vam sem oposição esses mares e mostravam aos povos ribeirinhos (o “Século da Humilhação”), tendo como principal consequência a
da África Oriental, da Arábia, da Pérsia, da Península Indiana, do perda de vastos territórios: com a derrota na I Guerra do Ópio face
Golfo de Bengala e das ilhas de Sumatra, Java e Bornéu, a opu- a uma esquadra inglesa, a China teve que ceder temporariamente
lência e poderio do Império Chinês. Essas foram as sete grandes Hong Kong; com a derrota naval frente aos franceses, perdeu a
viagens que o almirante Zheng He realizou entre 1405 e 1433, e Indochina, e com a derrota frente ao Japão perdeu a Coreia e Tai-
que culminaram um período da história da China em que foi dada wan. Com tudo isto também a aura e o poder do Imperador “mir-
importância aos assuntos do mar. Até Hangzhou, a capital durante raram” e a China entrou num período de guerra civil.
a dinastia Song, era um importante porto junto ao mar, como o
testemunhou Marco Polo. FASE DE QUARTO CRESCENTE
Os chineses tinham-se antecipado ao Ocidente no desenvolvi- - O REGRESSO AO MAR
mento técnico náutico: compartimentação estanque, navios de
rodas (movidas manualmente), leme à popa, réguas nas velas, O regresso ao mar aconteceu, na linha da tradicional paciência
armas de fogo, bem como nas técnicas de navegação: agulha e do pragmatismo chinês, quando teve que acontecer. A vitória
magnética, estima, posicionamento em latitude pela observa- e consequente reunificação operada por Mao Zedong, em 1949,
ção da passagem meridiana das estrelas, tábuas e cartas náuti- deixou uma “pedra no sapato” aos dirigentes chineses - a ilha de
cas. Durante séculos embarcações chinesas encarregaram-se do Taiwan. Seguiu-se um período no qual a China procurava a autos-
comércio externo marítimo, sulcando o Oceano Pacífico Oriental e suficiência em termos agrícolas e industriais e minimizava o papel
entrando no Índico e em contacto com navegadores árabes. do comércio no desenvolvimento económico. Nesse período,
O Império Chinês tentou também alargar-se para o mar, na mentalidade das elites chinesas, o poder terreste prevalecia,
nomeadamente para o Japão (em 1274 e em 1281) e para Java. dada a vulnerabilidade das fronteiras terrestres após o colapso da
Nestas operações anfíbias falhadas, tal como aquando das via-
gens de Zheng He, estiveram envolvidos mais de uma centena de
navios; à época é admirável o modo como foi possível comandar
tão grandes esquadras, enfrentando temporais, navegando por
águas restritas, evitando escolhos e mantendo os navios à
vista uns dos outros para que os sinais visuais fossem
compreendidos.
Foi, porém, considerado que a mais-valia em ter-
mos de conhecimento, artes e técnicas estrangei-
ras, informação geográfica, acordos diplomá-
ticos e comerciais proporcionados por essas
viagens não justificavam os seus custos
astronómicos. Ainda para mais, as expedi-
ções tinham demonstrado que a China era
superior às outras nações e a forma de
preservar essa supremacia era limitar ao
máximo as influências externas. Sucessi-
vos éditos imperiais desencorajaram o DR
comércio marítimo de longa distância,
o povoamento de ilhas e a construção
de grandes navios; dois anos depois
de Vasco da Gama chegar à Índia eram
proibidos os navios de mais de dois
mastros. As 7 grandes viagens do Almirante Zheng He. DR
SETEMBRO/OUTUBRO 2017 23