Page 161 - Revista da Armada
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Gradiente perigoso
vida em pequenos patrulhas, nas águas dos Aço- tina, começámos a apanhar com água bem puxada por
res, fazia-nos ter mais respeito por aqueles nossos vento rijo, ponteiro, ainda não tínhamos virado a ponta
Acompanheiros de alto mar, que se levantavam a Oeste. O andamento em relação a terra diminuíra, mas
desaTas parao ofício da pesca, com a variante de estes vol- mantínhamos as rotações. O comodoro ia a meu lado, na
tarem quase sempre ao aconchego do lar ao fim de cada ponte baixa, e com frequência a água que batia nos vidros
jorna, e nós permanecermos por lá vários meses, não sesa· nos privava de visibilidade exterior. As esperanças de me-
bia nunca ao certo quantos. O patrulha era, com efeito, lhoria desvaneciam-se com os quartos de hora que iam
joguete de menino a rebolar-se no capricho das vagas passando. Pelo contrário, o mar tornava-se mais alteroso
que, naquelas ilhas -origem tradicional do tão badalado à medida que nos afastávamos das alturas protectoras da
anticiclone - atingiam com frequência a altura do mas- ilha. Não tenho dúvidas de que, na circunstância, qual-
tro, sem nos habilitarem com aviso prévio e amigo, propí- quer de nós esperava do outro a deixa para alterar a situa-
cio a certa defesa. ção. E pensei que a iniciativa poderia ser minha, ordenan-
Lembro-me de tardes lindas e calmas, o limbo supe- do, por precaução, diminuir as rotações. Mas não tardou
rior de algumas das ilhas a recortar-se em céu de pôr de mais de dez minutos que a capitulação viesse. inteirinha
So.! e, não fora a preocupação de atender ao governo do (e bem recebida) da voz autorizada do superior: «Oh
marinheiro do leme, ou a qualquer navegação exterior, o Sousa Machado, vamos masé para trás!»
«rou-rou» do motor até convidaria à meditação. Raros, De outra vez, sem comodora (portanto, sem ter mais
porém, estes momentos. O normal, mesmo, era aquela quem decidisse ... ), saíamos dum périplo da ilha de Santa
pequenita altura de proa afocinhar por debaixo da vaga, Maria onde cumpríamos alguns montes de sondagens de
a sacudir-se depois como pardal a tomar banho numa batitermógrafo. Ao dobrar o extremo Nordeste, para ru-
poça de água. Mar de través tinha também o condão de mar a Ponta Delgada, começou a discussão entre o mar
nos propiciar a experiência curiosa de, alternadamente, e o navio. a ver qual dos dois batia mais forte. Aí o céu
oferecer um horizonte distante, até onde se alongavam estava cinzento, o vento fresco , o mar cavado. As vagas
sobranceiros os olhares-estávamos na crista da vaga-, apareciam-nos de frente , como paredes de cimento, de
para logo de seguida nos sentirmos entalados entre duas crista bem acima dos nossos o lhos, e abatiam-se, inundan-
montanhas, como em vale profundo, numa altura líquida do todo o espaço de proa, desfazendo-se contra a peque-
à esquerda, outra altura líquida à direita, que infundiam na resistência da ponte, ficando ainda segundos após, a
respeito. escorrer pelos vidros, quais cortinas que não deixavam
Só o conhecimento histórico de que aquelas latas de ver mais nada. O navio empinava-se. Estremecia. Quan-
sardinha já vinham resistindo a isto desde anos atrás, nos do a água desaparecia dos vidros era para nos dar a impres-
acalentava a esperança de continuarem garbosamente a são dum vácuo, dum poço à nossa frente, onde logo a se-
resistir. Mas é claro que nem sempre a missão obrigava guir caíamos com fragor. E quando mal se esboçava um
o pessoal a ter de aguentar. De uma vez que o comandan- recuperar da queda, quando parecia que nos íamos a sa-
te naval quis sair comigo, para a Terceira, em visita de ro- far, novo muro de cimento se erguia, alteroso, avançando
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