Page 405 - Revista da Armada
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CRÓNICAS  DE  RUBEM BRAGA
         (1949/1960)

              o BARCO ..JUPARANA»           noeiro, do meio do rio, faz um sinal, e ele   saiu.  O sol era lelle.  Comprou trb mexeri-
            Apresento-vos um navio que não i  dos   pára,  delicado.  O  canoeiro lIem  lIindo,  e   cas,  saltou  para  a  praia,  esticou-se  na
         maiores do mundo: rem 26 metros de popa   agita um papel na mão.     areia, de bruços, os olhas sobre um braço,
         a proa, e 6de largllra.  Está sendo todo pin-  - Firmino,  esta carta I  para botar no   recebendo nas COSIas o calor do sol.  Den-
         tado de branco; assim ficará mais bonito.   Carreiro em Colatina ...   tro de sua cabeça  ainda girallam  COllller·
          Estão sendo arrumados seus B camarotes,   E se a canoeiro lIiaja,  sua canoa Iam·   sas  e  músicas  da  madrugada,  rostos  de
         e também.seu bar com uma boa geladeira.   btm  lIai.  Temos  nesta  lIiagem  atadas  a   mulher, encrencas de negócios.
          Foi lançado  à água  em  /926,  mas agora   cada lado seis canoas compridas, e Pedro   Quando se levantou e começou a an-
         está fodo renovado, e gafame.      Pichim me diz que chega a levar trinta em   dar pela praia,  teve  a  impressão de  que,
            Quereis fretar esse navio e nele navegar   suas ilhargas amigas.   sob um guarda·sol colorido, estalla um ca-
         Q "ossa tristeza e o sonho vosso? Arranjo   Não t  preciso comprar passagem, fica   sal conhuido.  Passou  longe;  não queria
         por 3 dias;  e  pagareis 8(}() cruuiros por   entendido que em cima t primeira c/asse e   encomrar ningulm, tinha um certo pudor
         dia. Isso inclui, senhor, Q lenha pafa o mo-  em baixo é segunda.  Camarote e comida   de seu corpo assim branco,  pesado,  sem
         rar de BOcava/os, e o pagamento dos J3Ir;-  são pagos em separado.  Pedra  Pichim, o   graça.  Foi andando e semindo prazer em
         pulantes,  inclusive o papo cordial e  Q  co-  lIelho lobo-da-rio, lella na mão um cader-  andar ao sol,  em  encher os  pulmões  de
         chacinha fornecidos,  em  seu próprio co-  no  escolar  onde  toma  nata  da  nome  da   lIento de mar. Num trecho de praia deserta
         marote,  pelo comandante  Pedro  Pichim.   passageiro e o preço da passagem: da fa-  leve vontade defater ginástica; mas se dei-
         Seu  nome,  lal como ficou  registrado  em   zenda Maria Bonita até à fazenda Boa Es-  xou ir andando a chapinhar, cama meni·
          Moscou,  i  Pedro Epichim,  e assim ele se   perança, ele calcula, par exemplo, 10 cru-  no, pela dgua cheia de espuma.
         assina; mas está acostumado a ser chama-  zeiros.  Há 26 anos,  desde que esse navio,   Foi quando parou, e ficou olhando as
         do de seu Pedro Pichim.            lIindo da Alemanha, foi montada em Co·   espumas,  enquanto a  marola se retiralla,
            O cozinheiro I  bom, e não ficareis es·   latina e lançada dJ águas da ria, que Pedro   lellando  um  pouco  de  areia  sob  as seus
         pantado ao reparar, por exemplo, que a ti·   Pichim o comanda para baixa e para cima   pés, e sentiu uma leve tontura, e telle canso
         maneiro dJ vezes usa um enorme facáo de   - e ajuiUJ a pôr a mesa, oferece manga às   cilncia  de  coma se  afastara  da  mar,  de
         mata pendurado no cinto.  Nosso barco I   damas e ingá às criancinhas, táo cheio de   coma se fizera estranha ao mar, de coma
         muito florestal.  Nele podereis subir de Re·   autoridade e tão simplesmente cordial,  já   se esquecera do mar, como quem se esque-
         glncia do Ria Doce a Colatina e entrarem   com dois filhos homens na tripulação. An-  ce de um amigo ou de um grande cão que·
         muitas lagoas,  inc/usive na maior e mais   tigamente,  diz ele que muitas lIeus tinha   rido,  de  uma  pdtria  idolatrada,  de  uma
         bela de todas as lagoas de água doce deste   de cobrar passagem de rellólller na cinta,   mulher amada.  Foi  allançando  dellagar;
         imensa Brasil, de água muita c/ara e muito   dJ  lIeus mesmo  na  máo,  parque a/gll/n   recebeu  no veito  devais na cara,  as pri·
         funda, cercada de floresta imponente, cam   baiano de maus bafes resolllia fazer cari-  meiros bomfos de espuma e, coma sentis·
         a Ilha da Imperador na meia, tenda uns 32   nho no cabo do seu facdo de mato e dizer   se frio,  deu mais alguns passos depressa,
         quil6metros de  comprimento e na maior   que já tinha paga ... Então paga OUlra  IIU   para poder mergulhar. Telle prazerem be·
         largura uns 5 -a lagoa de Juparaná.   porqUl! senão enCOSlO a barca na barranco   ber um pouco de água salgada, depois em
            Nesse  nallio podereis levar,  se  tendes   e lIoci salla .•      receber  no corpo  uma lambada de  onda
         muitos amigas, atI 300 pessoas, e se tendes   Quem sobe da Barra e  III, /ogo acima   mais forte.  A vançou ainda, passou a arre·
         muitas haveres atI 25 toneladas de carga.   de POlloação, na lado norte, uma pequena   bentação, começou a nadar para fora; de·
         Aconselho·vos a não levar tanto, pois se i   sede de fazenda fazenda  um c/ara no de-  pois se  voltnu  de  costas.  ficou  boiand/)o
         lIerdade que a Juparanã cala,  sem carga,   brum escuro da mata e pergunta seu nome,   Olhalla duas nUllens brancas no clu mui-
         apenas 55 ctnt(mentros,  tambl m  I  certo   lhe respondem: é a Implrio da Boa Vonta-  to  azul.  Era como se fossem  as m esmas
         que seu casca se afunda na água mais  I   de.  No  dia  azul em  qlle  esse  império se   nUIIMS de  lIint~ anos atrás,  de lrinta anos
         centfmetro  por 2 toneladas  de  carga;  de   estender pelo mundo, há de ter como nau   atrás,  na mesmo céu da infdncia -e tudo
         maneira que, tenda muita pesa, ele perde   capitánia de sua grande Marinha de Paz o   o que tinha acontecido depois fora esctlro
         o que me parece ser seu encanto principal,   barco  Juparanã,  amiga de  todas as ban-  e sem sentido, os homens com quem lida-
         que I a presteza e graça cam que acode ao   deiras brancas.          ra, as mulheres qlle amara,  e as brigas e
                                                                              trislezas  -  tudo  era  remOia  e  absurdo
         chamamento de qualquer bandeira branca                   Março. 1949
         na margem, encostando as peitas na bar-                              cama um pesadelo em  um túnel.  As nu-
                                                                              lIens  se  mOlliam  dellagar.  Sentiu  que seu
         ranco, cama pata maternal.                    NQMAR                  corpo ia afundando, moveu levemente as
            Assim essa viagem de 130 qui16metros   Se soubesse cantar alguma coisa canta-  pis, sentiu asaI queme na cara malhada.
         desde a Barra atI Co/atina lem na lIerdade   ria .. O Ébrio., de Vicente Celestino . .. Tor-  Quando começou a nadar para 1I0ltar
         muito mais da dobra,  não só pela capn·.   nei-me um ébrio ... lO    à terra, percebeu que uma corrente O puxa·
         cho do canal C!Jmo  pelo bom coração de   Um  grande  cansaçO  pesalla  em  todo   vaparafora, cam umaforçainllencível, e
         nosso barco.  As lIeus aparece uma bano   seu corpo,  por onde a água escorria.  Fe-  que os músculos de seus braços doiam de
         deira  branca à  margem  direita  e  OUlra  à   chou o  chureiro,  começou a  se enxugar   fadiga.  Debateu·se ainda,  algum  tempo,
         margem esquerda; e nem I bandeira direi·   lentamente.  Quando foi se  lIestir,  a porta   com uma súbita railla de animal que não
         10,  t  11m saco de algodão ou um simples   do armário estaM aberta,  a qlle tem o es-  quer morrer, e a água abafou o seu grito
         lenço,  qualquer farrapo branco chaman·   pelha  dentro,  e  ele  se  I'iu  nu.  Achou-se   rOIICO.  Pensou confusamente que deixara
         do,  mandando  seu  apela  da  ftmbria  da   branca, detestavelmente branco como um   as  três  mexericas  na  praia,  e  o  telefone
         floresla  escura.  E  14  lIamos costurando o   europeu, sentiu-se meio gordo e mole. Há   locando  no  apartamento.  Longe,  no
         rio, da margem norte à margem sul.   quanta tempo não IOmalla  um  banho de   horizonte, passa 110 um lIapor.
            Quando anoitece,  basta ao caboclo ri-  mar!                                       Rio, Abril de 1952
         beirinho agitar uma lanterna ou lampari-  Odiou,  de repente, sua lIida de traba-
         na, um simples tição bem aceso, para que   lha e de bar,  vivida quase toda sob a luz
         o  Juparanã  mude  de  ruma  e,  com  sua   artificial. Tinha mil coisas a fazer na cida-  PASSEIO
         grande roda traseira batendo como um co-  de; precisava ir ao escrit6rio daquele sujei-  Forte de S. João,  ÚJje, Santa Cruz _
         ração  amigo,  lIá  apanhá-lo  na  barranco   to, telefonar para quatro ou cinco pessoas,   e depois esses caminhos que se perdem no
         humilde.  E ele é amiga de suas irmãs me·   providenciar aqueles papéis.   mato, essas prainhas que se abrem debai·
         nores,  essas canoas do Rio  Doce,  canoas   O telefone bateu.  Ia atender,  mas sen-  xo de umos árvores, emredois rochedos.
         de peroba, cobi,  lIinhático,  cerejeira,  oiti-  tiu que se atendesse ficaria preso - preso   Não sei se estamos na Charitas ou em
         cica, araribá, seja de 20 metros de compri.   àquelefio negro, aos compromissos, às sa-  Jurujuba; de meu barco lIejo,  cam pregui.
         do e 4 palmas e challe de largura, seja ca·   fas  dos ediflcios do centro, à vida de rodo   ça,  pequenas casas cor-de·rosa cam jane.
         noinha boieira que um menino guia.  Oca·   a dia.  O telefone ainda tocava quando ele   las azuis.  Eu escrevi - .. meu barca. - e

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