Page 406 - Revista da Armada
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o  barco não  I  meu.  Mas neste  momento   eu  seria  um  madeireiro,  poderia  cortar   elJidéncia: o  navio mal apontalJa  no Ar-
            está sendo.  Entre as árvores,  escondida,   meus pinheiros ... Ponderei que tenho uma   poador e nÓs já estávamos perto do Posto
            no morro do Cavalão, está a casa do Calo-  pena imensa de cortar árvores.   8.  Mos arrumou  uma explicação:  -o co-
            cu.                                 -Asenhoramiotem?                mandante mandou tocar devagar para os
              o barco não i  meu, a casa não i mais   Também tinha.  E então baixou a voz,   passageiros verem a paisagem,..  Fiz  uma
            de Carlos Leão, mas a propriedade não é   sombreou os olhos de poesia,  e me disse   reflexão:
            um furto,  i  uma pilhéria.  Se nesta manhã   que ela  mesma.  corretora.  também com-  - Querdizerque lossim: o navio a ver
            de sol desapareço do escrü6rio e fujo para   prara duas parcelas naquele terreno.  E ti·   a paisagem ea paisagem alJero navio.
            as águas azuis, e levo amigos, e nos rimos,   nha certeza - confessava - que tamblm   E  graças a isso,  quando lhe paguei a
            e bobeamos pelas praias e ilhas,  e come-  não teria coragem de mandar cortar seus   corrida ele me perguntou se eu era poeta:
            mos camarão  frito  na casca,  e  bebemos   pinheiros; também adoralJa árvores e pas-  _isto  que O senhor disse eu  vou repetir à
            cervejinha  gelada,  e  nos sentimos ainda   sarinhos, cortaria apenas os pinheiros ne-  patroa,..
            mais amigos porqlle o mar é azul e o sol   cessários para fazer uma casinha de ma-  O  casal  de  portugueses  da  portaria
            é louro -então alguma coisa, neste barco,   deira: o lugar é lindo, em um pequeno pla-  conlJersava com o porteiro do lado e o  ze-
            já é eternamente minha.           nalto,  dá para uns penedos junto ao mar,-  lador do ediflcio da frente,  todos portll-
              Quem comprou a casa e as árvores de   as árvores choram. e cantam com asondas   gueses.  Dei a lIoticia: «o 'Vera Cruz' está
            Carlos Leão 110 morro do CalJalão?  Nem   quando sopra o lJento do oceono ...   passando lá no mar,..
            sequer sei o nome desse homem feliz,  mas   Confesso que paguei a primeira presta-  O _Vera Cruz»! E saíram todos para a
            delJo confessar a ele ql4t a sombra da man-  ção: ela passou o  recibo,  sorriu,  me disse   praia; no caminho arrebanharam um por-
            gueira  i  um pouco minha;  ele  não com-  _muchas gracias,. e _hasta lueguito,. e pur-  tuguês que passava:
            prO/I a sombra.  A  sombra quem a faz é o   tiu  com  seus  olhos  azuis,  me  deixando   - O _Vera  Cruz», homem,  venha de-
            sol, quem a aZlda é a lua, quem a deixa pe-  meio tonto,  com a  lJaRa  impressão de ter   pressa, lJenha/
            rene no ar, remota, mas fresca,  I a sauda-  comprodo  um  pedaço  do  Oceal/o  Pac{-  E lá se foram a correr, os pedros állJa·
            de do que passou.  E ° tempo lião lJellce a   fico.                 rescabrais.
            realidade  mais profunda  das  coisas:  dos   Santiago do Chile, Abril. 1955           Rio, Março, 1956
            pls qlle pisaram  aquele chão,  tie nós que
            ali respiramos,  e selltimos e vivemos e soo   os PORTUGUESES E O NA VW      A  TARTARUGA
            nhamos,  alguma coisa ficou  e  vive.  Não   António Maria contou que uma vez ia   Moradores  de  Copacabana,  comprai
            somos famasmas: para IIÓS essa gell/e que   num táxi guiado por um chofer portuguls   IJOSSOS peixes na . Peixaria  Bolívar»,  Rua
            está morando hoje na casa é que são fano   lJelho,  bigodudo,  calado,  de  cara  triste.   Bolivar,  70.  de propriedade do Sr.  Fran·
            tasmas - seres vagos, sem sllbstância nem   Quando o carro chegou d praia O chofer   cisco Mandarino.  Porque eis que de é um
            face.  Eu me lembro de um momento, uma   lJiu um barco e exclamou, apontando com   homem de bem.
            tarde, sob as árvores, sobre o manso mar,-  o braço esticado, os olhos brilhantes, num   O caso foi que lhe mandaram uma lar-
            o Rio de Janeiro parecia "emular na dis-  tom de descoberta, desafio ealegria:   taruga de cerca de 150 quilos, dois metros
            tância, halJia um pássaro piando.   - Olha o navio pequenino!       e (dizem)  200 anos,  a qual de expôs em
              Lembro OI/lros momentos. Mas o bar-  Essa fascinação dos portugueses pelos   sua peixaria durante tris dias e não a quis
            co deixa  longe,  a  boreste,  perdida numa   navios me salvou a tarde de ontem.  Eu ti-  lJender,- e a levou atI à praia, e a soltou no
            nélJOU de luz,  Icaraf.  Uficou Iml ginasia-  nha de ir à Alfándega e,  porlantO, passar   mar.
            no passeando pela praia,  morando numa   pela praça Mauá.  O portugub do volante   Havia  um poeta dormindo  dentro do
            casa do Campo de S.  Bento.  Ele lJai neste   vinha praguejando contra o calor, conlra   comerciante. e ele reverenciou a vida e a li-
            barco,  já  bordeja o  lJelho forte,  vai para   os outros carros,  contra tudo.  Antes dele   berdade na imagem de uma tartaruga.
            uma  praia  qualquer entre palmeiras,  vai   eu  vi o _Vera  Cruz» encostado ao cais,  e
            distraído, deixando a melancolia na estei-  disse:  _Olhe o 'Vera Cruz', que nalJio bo-
            ra das espumas,  vai lia força,  sem me im-  nito!,.  Ele  recebeu  isso  como  um  elogio
            portar com a água fria  que escorria pelo   pessoal e começou a falar  do navio com   Nunca mateis a tartaruga.
            ramo e me molhava a mallga da camisa;   entusiasmo,  ali conhecia  um  maquinista   Uma vez, na casa de meu pai, nós ma-
            fui remando, remaI/do com toda a força.   de  bordo e  lJisilara  todo ° gigal/te:  «tem   támos uma tartaruga.  Era uma grande, ve-
                            Rio, AgoslOde 1952   oito andares, mas tem elevador!»   lha  tartaruga  do  mar que  um  compadre
                                                 Pelas  cinco  e  pouco,  ao  voltar para   pescador nos malldara para Cachoeiro.
                A CORRETORA DE MAR            casa,  me  lOCOU  outro  volante portugues.   J"ntam-se  homens  para  matar  uma
              A  mulher  emrQlI  110  meu  escritório   Na  altura  do  Flamengo  divisei  O IlOlJio,   tartaruga, e ela resiste horas. Cortam·lhe a
            com um sorriso muito amável e os olhos   que marchava para a salda da barra,  e re-  cabeça, ela continua a bateras nadadeiros.
            muito azuis.  Desenrolou um  mapa e co-  sollJi elogiar nOlJamente ° barco,  para lJer   Arrancam-lhe  o  coração,  de continua a
            meçou a falar com uma certa velocidade,  ° efeito.  Foi maravilhoso. _É realmente, i   pulsar. A  vida está entranhada nos seus te-
            como i  lISO dos chilenos. Gosto de ver ma-  realmente,  I  um  lindo  navio!,.  Fiz  notar   cidos com  uma teimosia  que inspira  res-
            pas, e meergu; para olhar aquele.   que o  Brasil não tinha nenhum navio de   peito  e medo.  Um pedaço de carne corta·
              Quando percebi que se tratava de um   passageiros tão grande e tão bonito, e isso   do, jogado ao chão, treme sozinho, de sú·
            loteamemo, e a mulher queria me vender   animou  ainda  mais  o  homem.  Acabou   bito.  Sua  agonia  i  horrível  e  insistente
            uma  parcela,  me coloquei na  defensiva;   confessando que em sua opinião não era   como um pesadelo.
            disse que no momento suspendi meus ne-  somente o Brasil que não possula um na-  De repente os homens param e se en-
            gócios imobUiários, e até estava pensando   vio assim: pais nenhum do mundo.  Os in-  treolham, com o vago sentimento de estar
            em  vender  meus  imensos  territórios  no   gleses, os americanos, os franceses,  os ita-  comelendo um crime.
            Brasil; que alim disso o  Chile i  um país   lianos têm bons nalJios, sim, bons nalJios,
            muito estreito e sua terra deveria serdilJidi·   mas nenhum  tõo  bonito . • 0  senhor não
            da entre seu povo; até ficaria mal a um es-  acha?,..  DesconlJersei,  _esse 01 ell vou ver
            "angeiro querer especular com um trecho   passar de minha janela em Ipanema».  Dis-  Moradores  de  Copacabana,  comprai
            da  faja  angosta. que I  como os chilenos   cordou: o navio tinha grande velocidade e   IJOSSOS  peixes  na  "Peixaria  Bo!ívar,.,  de
            chamam sua tira estreita de terra, que por   cortava muito caminho por onde ia.  Dis-  Francisco  Mandarino,  porque  nele,  em
            sinal costumam dizer que I "larguÍJsima»,   cutimos  um  pouco,  eu  jogando  no  táxi   um momento belo de sua  lJida  lJulgar,  o
            para assombro do brasileiro recém-chega-  dele, eeleaposlOndo nonalJio.   poeta  lJenceu  o  comerciante.  Porque ele
            do,  que não sabe que isso em castelhallo   Em Copacabana voltamos a ver O bar-  lião matou a tartaruga.
            quer dizer _compridissima».       co,  na altura  da  Cotunduba.  Fiz-lhe  ver          Rio,Julho, 1959
              Os olhos azuis fixaram-se nps meus, a   que eu. estalJa ganhando a apOsta: «já pas-
            mão extraiu de uma pasta a fotografia de   samos 110 frente».  Ele balançou a cabeça:   De ,,0 Homem  Rouco .. (1949).
            um  terreno  plantado  de  pillheirinhos  de   _agora  é que ele vai desenvo/lJer a veloci-  .. A  Borboleta  Amarela» (/955) e
            dois ou trés anos: não se tratava de especu-  dade,..                       _Ai de  Ti.  Copacabana .. (1960).
            lação imobiliária;  dentro de poucos anos   Na  Vieira Souto ele teve de se render à   Edilora Sabiá.  Rio de Janeiro.

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