Page 301 - Revista da Armada
P. 301

HISTÓRIAS  DE  MARINHEIROS/98



          Outra página de memórias






              á tá vai um quarto de século de-
              pois que deixei de exercer fun-
          J ções na Capitania do Porto de
          Aveiro.
             Foi  uma das comissões mais in-
          teressantes da minha carreira.
             As gentes e a terra prenderam-se
          para  todo  o  sempre  na  minha  me-
          mória.
             A principio foi logo o sortilégio da
          paisagem  ribeirinha.  A  Ria,  num
          abraço tentacular, cingia, com ternu-
          ra,  toda a terra de norte a sul. Múlti·
          pios canais enredavam-se por aqui e
          por ali, num labirinto que se afigurava
          inextricável.
             Na calmaria das suas águas cru-
          zavam-se centenas de embarcações
          em actividades várias.  Era a pesca,
          o desporto. a apanha do moliço. os
          transportes.
             O espectáculo variado do céu ti-
          nha na Ria uma miríade de espelhos
          a reflectir,  numa fidelidade escrava,
          os ' cambiantes  múltiplos  que  assu-
          mia.
             Ora eram os incêndios do pôr do
          Sol, a alastrar, indomáveis, por todo
          o lado, tingindo de oiro vivo a placi-
          dez das águas muito quietas.
             Ou, então, eram as longas noites
          de  luar,  com escorrências  de prata
          vindas do alto, a cobrir toda a Ria de
          uma luz serena, só perturbada, aqui
          ou além, pelo palpitar de alguma es-
          treia mais viva espreitando de cima.
             Já nos dias borrascosos, com nu-
          vens  negras  puxadas  do  mar,  as
          águas entristeciam, de todo amorta-  a saber a salgado, a pingar gotas da   Logo nos primeiros dias, após a
          lhadas  em  roupagens  escuras  caí-  Ria  por  todo  o  corpo,  por  toda  a   chegada, procedi aos cumprimentos
          das de um céu pardacento e frio.   alma ...                          regulamentares:  governador civil,
             No tempo das marinhas, o perfil   As gentes eram de uma rara no-  presidente da Câmara, comandante
          triangular dos montes de sal sugeria   breza, com personalidade firme, sem   militar.  Nesse  tempo,  a  autoridade
          um  vasto  acampamento  de  tendas   quebras ou transigências.       eclesiâstica  não  se  incluía  naquele
          reflectindo, ao sol, a brancura imacu-  Recordo que,  no  tribunal  mariti-  número. Mas, considerando a figura
          lada do ilusório tecido de que pare-  mo,  os  transgressores  dos  regula-  prestigiosa do bispo, senti a obriga-
          ciam feitas.                      mentos da Ria enfrentavam com di-  ção  de  lhe  apresentar  cumprimen-
             O.João  Evan~elista de  Lima  Vi-  gnidade a responsabilidade das fal-  tos.  Antecipava,  assim,  de  certo
          dai, então bispo da diocese e figura   tas cometidas e aceitavam, de fronte   modo  protocolarmente,  o  contacto
         destacada do clero, orador e escritor   erguida  e  sem  melindre,  as  penas   que, com certeza, com ele viria a es-
         de  mérito,  confessou-se  uma  vez   que, no seu entendimento, conside-  tabelecer na vivência social que an-
         plasmado de Aveiro,  com os beiços   ravam justas.                    tevia.

                                                                                                             11
   296   297   298   299   300   301   302   303   304   305   306