Page 301 - Revista da Armada
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Is,..,,,os II. 10'0
ma das mais difíceis situações que o investigador de História
tem de enfrentar é, sem dÚ\'ida, distinguir a partir das fontes
U escritas pior ainda, da tradição oral. o que foi realidade. o que
é pura legenda.
Quantas vezes n.\o se atinge a evidência? O que sucede frequente-
mente, é estabelecerem-se duas 00 mais correntes de opinião, em que
se tomam posições diferentes, por vezes ant.lgónicas, na interpretaÇão
00 facto. cuja autenucic!ade se pretende 00 não coofirmar.
No entanto, nol História da Ciência, as coisas são de certo modo fa-
cilitadas, porque nesle importante ramo da HiSCÓl'ia, existem outros fac.
tores de avaliaç.\o, que se mantém inalteráveis ao longo dos temJX)S.
Vejamos.
É bem coohecida a façanha que se atribui a Arquimedes, quando segundo. "'tas como a madeira de um na,'io terá, pelo menos, 10%
este, em 214 AC. incendiou, por meio de espelhos, a armada do de humidade, será necessário dispor de 1.5 caVcm2/seg. Conclui
general Marcelus, quando este sitiou Siracusa. que os espelhos de Arquimedes não teriam potência suficiente para
Não existe qualquer escrito de Arquimedes ((.287-212 AO sobre incendiar os navios romanos.
este sucesso sobre as galeras romanas. Aliás, como é sabido o sábio Piem> Thuillier (I I, critica Simms por não dar o verdadeiro valor às
foi assassmado, por um soldado romano, durante o saqU; que se experiências de Bufíon, pois considera que lemos de ser muito pru-
seguiu ao cerco daquela cidade. dentes quando se especulam as técnicas antigas. Estamos de acordo.
Também não nos chegou qualquer outra documentação coesa. M~s, no que respeita aos espelhos ardentes de Arquimedes,
Tooavia, no século II OC, o médico grego Klaudios Galêoos (131- amscamos a apresentar a nossa opiniào.
201), num texto ambíguo inserido no seu tratado "Temperamentos" Pondo de parte a utilização de um espelho, ou espelhos parabóli-
afimla que Arquimede<i fez arder os trirremes inimigos recorrendo a cos, não SÓ pela dificuldade (senão. impossibilidade) de os construir
pureia. A dificuldade é saber O que signifICa esta palavra. Há duas no século II AC, corno pelo facto de não terem qualquer utilidade,
teses: uma diz que se trata de brulotes, isto é mâquinas de guerra pois exigiam que o alvo estivesse à distJncia focal. julgamos que:
para lançamento de dardos incendiários; outra, que s.\o mesmo 1. A experiência feita por Sakkas parece-nos coerente, dado que,
espelhos ardentes. ~ os escudos manobrados individualmente por 70 operadores, é
Nào vamos, no limitado espaço deste artigo, referir as várias posslvel uma concentração simultânea dos raios solares e portanto a
posições seguidas por todos aqueles que se debruçaram sobre o elevação de temperatura capaz de incendiar o alvo.
assunto. Vamos referir alguns. Começaremos pelo iamoso René 2_ No que respeita à experiência de Buffon a situação é diferente.
Descartes (1596-1650) que, fundamentando-se nos seus conheci- De (acto era necessário pôr em estaçJo 128 espelhos o que não se
mentos de óptica, afinnou que, como os raiOS de Sol não ~ ris<> afigura fácil. nós diríamos mesmo impossível. PClftlue nos trinta minu-
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~me~"e ~raJeI~, um espelho para ter resultados a uma grande tos que demorou a operaçao, o Sol percorreu 7.5 na sua órbita
dl.stâncla, teria de ter umas dimensões exageradas. Pelo menos o aparente, aspectO importante que não tem sido considerado. Isto quer
diâmetro de seis toesas (cerca de 11,7 metros) para que pudesse ter dizer que, quando os últimos espelhos eram colocados na p05Íçc\o
efei.tos incendiários a uma légua de distãl"lCia. Como alguns outros correcta OS primeiros já não estavam a refletir, no alvo, a luz solar.
sábiOS se opuseram a esta opinião, Descartes não 05 poupa na sua 3. Todavia, julgamos que estas duas experiências não retratam a
"Dioplrica"' (1637), onde declara: "Aqueles que não são mais do que realidade, por várias razões:
meIOS sJbios em óptica, dei:'(am-se persuadir por muitas coisas que a) Os ahos estavam colocados a cerca de 50 metros, distância,
.s.io impossi;''eis''. muito inferior :tquela. que admitimos que pudessem estar navios
Mais tarde, O conde de Buffon (1707-1788), é O primeiro a trazer- Inimigos a sitiar uma cidade. NOIe-se que o comprimento de um trir-
nos uma contribuição prática, ao construir, em 1747, um espelho reme pouco menos teria que 50 metros. Descartes, quando se referiu
constituído por 168 pequenos espelhos. Ainda existem dois espelhos ao assunto considerou que o alvo estaria a uma légua de distância, o
no Museu de At1es e Ofícios de Paris, que s.'io atriburdos a Bub. que também ~ fora da realidade.
~m é circular, mas o outro, constituído por 48 pequenos espelhos, b) Os alvos tinham de estar completamente imobilizados durante
lulga-se semelhante ao de 168. atrás referido, cujos elementos ti- pelo menos dois minutos (valor este indicado por Sakkas), o que não
nham (16X21.5 .cm) .• No dia 10 de Abril, a seguir ao meio dia, com é fácil de admitir, a não ser fundeado e mesmo assim com reservas
o sol brilhante, IrIcendioo-se uma tábua de pinho alcatroado, a ISO devido ao vento e a correntes. '
pés (cerca de 50 metros) de diSlància, com apenas 128 espelhos; a c) Uma luz intensa num local do exterior do navio, nào passaria
innamação foi súbita, estendendo-se por todo o alvo, que tinha 16 despercebida, tanto mais que num trirreme há uma imensidade de
polegadas de diâmetro (cerca de 45 cmr. Buffon ainda afirma que remadores.
necessitou de cerca de meia hora para fazer coincidir todas as ima- d) tvtas, mesmo que o fogo ateasse, seria numa área muito limita-
gens no mesmo ponto. da, e num só local, o que seria fácil de extinguir.
O engenneiro grego I. Sakkas. em 1973, tentou uma curiosa expe- Em face do exposto, parece que não é de aceitar que Arquimedes
riência à qual quis dar a maior realidade. Para o efeito usou setenta tenha contriburdo para a destruição dos navios romanos por meio de
escudos. como os usados pelos guerreiros gregos (os escudos tinham espelhos de fogo. Julga-se mais ajuizado atribuir a este sábio o pr0-
170X70 cm e foram cobertos com uma fina pelfcula de bronze bem jecto de construção de brulotes para a projecçao de dardos
~lido). Convenientemente orientados, conseguiu incendiar, em dois incendiários que. como vimos, é a outra interpretaçAo da palavra
minutos, o modelo de uma galera com 3,60 m de comprimento que pureia, escrita por Galêoos. O
se encontrava a SO metros de distância.
Ainda nos anos 70. D. L. Simms, apoia@se em experiências A. Estkio dos Reis
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várias. especialmente da British Fire Research Station, era da opinião
de que a madeira dum navio, se estâ bem seca, pode ser inflamada IIIVeJ'"desrP~. Urte~:NthllnédetflelTllltlll'5~. inLJ~
com uma radiaçAo de 7 calorias por centfmetro quadrado e por
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