Page 133 - Revista da Armada
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A MARINHA JOANINA (6)
O Projecto Joanino
O Projecto Joanino
6 de Janeiro de 1480, Muitos historiadores têm
num momento em visto neste texto de Vasco
Aque as relações entre Fernandes de Lucena a reve-
Portugal e Castela estavam lação de que o propósito
em vias de resolução diplo- fundamental de D. João II
mática através do tratado era encontrar esses reinos
das Alcáçovas-Toledo, anda- cristãos do Oriente, con-
va pelo golfo da Guiné um cebendo um vasto plano de
navio estrangeiro de nome cerco do poder muçulmano
Mondanina onde viajava o do Norte de África. Por ou-
francês Eustache de La tro lado, o contacto com o rei
Fosse. Nesse mesmo dia o do Congo, a própria subida
navio foi apresado pelos do rio, tentando penetrar no
portugueses e o viajante coração da África, e outras
francês deixaria um relato iniciativas lançadas para o
do seu cativeiro, onde revela interior do continente, levam
com pormenor as circuns- a crer que o rei de Portugal
tâncias em que foi capturado procurava qualquer coisa
por um capitão, de nome nesse sertão interior. O que
Diogo Cão. Estava-se, como Pedra de Ielala (150 Km a montante da foz do Zaire). Nela se encontram gravadas inscrições poderia ele procurar?… É
dissemos, no princípio do feitas pelos marinheiros de Diogo Cão. muito provável que fosse o
ano de 1480 e o texto do referido tratado já tinha sido assinado tal Preste João, um rei lendário que governava em parte incerta, lá
pelos representantes portugueses, aguardando-se a ratificação para a África Oriental. Faz sentido que D. João II assim tenha pen-
castelhana, que viria a suceder a 6 de Março desse mesmo ano. sado e faz sentido que tenha imaginado a possibilidade de alcançar
Entretanto, a política ultramarina, apesar de Afonso V ainda ser uma aliança com esse rei, que se supunha poderoso e rico.
vivo, estava entregue ao príncipe D. João, sabendo-se da forma Contudo, é preciso ter cuidado na interpretação destes documentos
decidida como pretendeu garantir o Mare Clausum (exclusivo do e não tirar conclusões absolutas sobre o assunto. Não é linear que o
uso do mar) nas paragens africanas. Por isso, as caravelas por- rei português apenas visse no Oriente este projecto missionário
tuguesas passaram a andar armadas com artilharia e houve ordens anti-muçulmano. Tentemos colocar as coisas no plano em que
específicas para aprisionar todos os navios estrangeiros que apare- podem ter sido vistas no final do século XV e procuremos interpre-
cessem por aquelas partes. Diogo Cão foi, portanto, um dos oficiais tar os acontecimentos. Repare-se que a primeira viagem de Diogo
do rei encarregados de levar a cabo esta política de monopólio Cão deve ter explorado uma parte significativa da costa africana
aparecendo o seu nome, pela primeira vez, neste relato de Eustache (ultrapassaram o cabo de Santa Maria), mas também deve ter toma-
de La Fosse. Contudo, outras navegações lhe dariam muito mais do consciência das enormes dificuldades que se ofereciam à nave-
fama do que estas campanhas no golfo da Guiné. Diogo Cão viria a gação para sul, ao longo daquela costa. Deve atender-se ainda que a
efectuar viagens decisivas em direcção ao sul, a partir de 1482 e necessidade ou a ânsia de informações estimulava a que se envias-
seria ele que encontraria, pela primeira vez, a foz do rio Zaire (norte sem expedições pelo interior da África. Mas todas estas acções
de Angola) subindo-o cerca de 150 quilómetros até contactar com o podem ter sido tentativas vagas de quem não sabe bem por onde
rei do Congo, com quem se estabeleceram relações muito estreitas. procurar. Não sei se se procurava o Preste João e, se calhar, nem
Estas viagens de Diogo Cão (que serão tratadas na próxima eles o sabiam. Pode acontecer que apenas tenham querido saber
revista) correspondem a um passo decisivo no avanço das navega- coisas diversas sobre aquele continente desconhecido. A própria
ções portuguesas e mostram uma intenção que ainda não se tinha Oração, não pode ser interpretada à letra, uma vez que se trata de
revelado nos anos que as antecederam: elas podem integrar-se já um texto diplomático de propaganda política que procurava
num plano muito mais alargado do que a simples exploração da impressionar e colher os bons ofícios do papa. São múltiplas as
costa africana à procura de novas terras ou novos locais de comér- questões que se podem levantar para tentar adivinhar os exactos
cio; elas pronunciam a ideia de tentar contornar a África para pensamentos de D. João II, mas não será fácil chegar à verdade.
chegar à Índia. Há vários factos concretos que o indiciam e um Apenas podemos dizer que era um homem com um projecto de
deles é, sem dúvida, a Oração de Obediência ao papa Inocêncio VIII chegar à Índia pelo mar e, para isso, deu ordens para procurar a
feita por Vasco Fernandes de Lucena, em nome do rei de Portugal. passagem sul da África. Entretanto foi experimentando, foi procu-
No seu texto está bem explícita essa ideia, quando afirma, “a tudo rando informações, foi lançando novas empresas no sentido de
isto acresce a esperança bem fundada de explorar o golfo arábico chegar a uma ideia clara. Se calhar, procurou tudo ao mesmo tem-
[Oceano Índico]” e acrescenta, mais à frente “… a dar crédito a po porque talvez não soubesse bem o que havia de procurar. Pouco
experimentados geógrafos, já a navegação portuguesa senão encon- se sabia sobre a África, sobre o Oriente, sobre o Oceano Índico,
tra senão a alguns dias de viagem”. A primeira viagem de Diogo sobre tudo o que transcendia deste mundo ocidental onde vivia.
Cão terminou em 1484 e o texto é feito em 1485, parecendo-nos As viagens de Diogo Cão compreenderam quatro anos de procu-
claro que haveria uma intenção do rei de Portugal em entusiasmar ra e, seguramente, trouxeram algumas pistas, mas levantam-nos
o papa com as acções navais dos portugueses, dando-lhe a enten- também alguns mistérios. Falaremos nisso na próxima revista.
der que dessa forma chegariam ao oriente onde, inclusivamente,
haveria “reinos e povos, que habitam a Ásia, mal conhecidos de
nós por notícias muito incertas, praticam escrupulosamente a fé J. Semedo de Matos
santíssima do Salvador”, como também consta na Oração. CTEN FZ
22 ABRIL 99 • REVISTA DA ARMADA