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A MARINHA JOANINA (7)
Diogo Cão
Diogo Cão
período do reinado de D. João II (1481-1495), no que diz mandou descobrir esta terra e pôr estes padrões por Diogo Cão,
respeito às viagens de exploração efectuadas no Atlântico, escudeiro da sua casa”. Este padrão fornece-nos pois algumas indi-
O revela-se muito parco de fontes históricas, permanecendo cações: o ano da criação do mundo de 6681, de acordo com o que se
cheio de situações obscuras que os historiadores nem sempre têm acreditava naquela época, começara em 1 de Setembro de 1481 e ter-
interpretado convenientemente. Há assim como uma espécie de minaria em 31 de Agosto de 1482; por outro lado, o facto do padrão
aura de mistério sobre os acontecimentos náuticos dessa época e, se chamar de Santo Agostinho, sugere que aquela terra tenha sido
pela certa, que isso não é estranho às controvérsias políticas do alcançada em 28 de Agosto (dia da festa do santo); assim, a data pro-
reinado e à necessidade de ocul- vável da chegada ao local
tar os conhecimentos portugue- poderá ser a de 28 de Agosto de
ses a olhares cobiçosos de es- 1482, dando-nos a ideia de que a
trangeiros. Sobretudo – parece- partida de Lisboa teria aconteci-
nos a nós – que as delicadas do pelo princípio desse ano ou,
relações com os reis de Espanha mesmo, pelos finais do anterior.
(os reis católicos) devem ter À falta de uma relação coeva
concorrido para algumas das destas viagens é desta maneira
tramas que, nos estudos poste- que temos de as reconstituir.
riores, resultaram em grandes Mas, se Diogo Cão ali estava
dificuldades de interpretação em Agosto de 1482, porque
dos factos. Aliás, muito poucos razão só teria chegado a Lisboa
anos após a morte do soberano, em 1484. Não faz sentido. É
já João de Barros confundia os tempo demais para um cami-
acontecimentos, descrevendo- nho que já não seria difícil para
os com pouca regra e com erros os portugueses. Por outro lado,
significativos. As “descobertas na sua última viagem, o nave-
marítimas” — sobretudo de- gador subiu o rio Zaire e deixou
pois de 1481 – envolviam pro- uma inscrição em Ielala, onde
jectos ambiciosos que, a concretizar-se, podiam representar uma está um brasão de armas de Portugal (ver revista anterior) que é
vantagem significativa dos portugueses no contexto das nações posterior às alterações efectuadas em Janeiro de 1485 (o escudo por-
europeias daquela época. É natural que o rei tentasse esconde-las tuguês, desde D. João I que era inscrito na cruz de Avis, mas D.
de observações indiscretas, sendo de admitir que haveria coisas João II alterou-o). Por isso, a partida dessa viagem só pode ter acon-
que assumiam as proporções de um segredo de estado, tal como tecido depois dessa data, ficando um intervalo de tempo de mais de
aconteceu (e acontece) com muitas das descobertas científicas do dois anos, entre a primeira e a última viagem. Mas há mais uma
século XX. informação que nos pode ajudar a recompor este puzzle: um alvará
Esta é, seguramente, uma das possibilidades de interpretação de D. João II, concedido a Diogo Cão em 8 de Abril de 1484, afirma
da falta de documentos acerca das viagens efectuadas no tempo que ele acabou de chegar de uma viagem a África. Ora isso quer
de D. João II, embora não sejam de pôr de parte as hipóteses que dizer que, depois da viagem de 1982 e antes da de 1485, é preciso
responsabilizam os problemas políticos ocorridos com algumas das considerar uma outra em que o navegador chegou no princípio de
mais importantes casas nobres de Portugal ou ainda outras causas 84. A conclusão de Carmen Radulet parece, portanto, lógica: houve
que escapam à nossa observação actual. três viagens e não duas, como supuseram muitos historiadores por-
As viagens de Diogo Cão estão dentro dos muitos acontecimen- tugueses.
tos desse tempo sobre os quais ainda subsistem dúvidas de diversa Nesta expedição de 1485 os navios portugueses foram até à ponta
ordem. Durante muitos anos, os historiadores tomaram como ver- dos Farilhões (22º 10’S) depois de terem deixado um último padrão
dadeira a hipótese de que este navegador efectuara duas expe- de pedra em Cape Cross (na Namíbia). Esta informação, acerca do
dições a sul do Equador: uma primeira com saída de Lisboa pela termo exacto da viagem (que poderá não ser muito segura), deve-se
Primavera de 1482 e chegada em 84; e uma segunda entre 85 e 86, a uma legenda de um mapa italiano de 1489 (Martellus), cujo texto
tendo (provavelmente) morrido nos mares do sul. Todavia, hoje sugere que Diogo Cão aí terá morrido. Se assim aconteceu, poderá
esta ideia está posta em causa, e Carmen Radulet, numa Reunião ter sido essa a razão porque os navios não avançaram mais para
Internacional de História da Náutica, efectuada em 1987, avançou sul, mas a questão também não merece uma opinião unânime dos
com a hipótese mais plausível de que tenham ocorrido três viagens, estudiosos que a este assunto se têm dedicado. Apesar de tudo, é
em vez de duas. possível dizer com segurança que entre 1482 e 86 – provavelmente,
Os primeiros padrões de pedra colocados pelos portugueses na depois de três viagens — Diogo Cão chegou (pelo menos) até Cape
costa africana datam desta altura também, sendo que o primeiro (S. Cross a 21º 47’ S. Ainda faltava muito para passar o Cabo da Boa
Jorge) foi colocado na foz do rio Zaire e o segundo (S. Agostinho) no Esperança, mas algumas dificuldades já tinham sido vencidas.
(então) Cabo Lobo (hoje Cabo de Santa Maria - 13º 25’S), ligeira-
mente a sul de Benguela. Ora o padrão de S. Agostinho tem uma
inscrição que diz o seguinte: “na era da criação do mundo de 6681
anos, do nascimento de Nosso Senhor Jesus de 1482 anos, o mui J. Semedo de Matos
alto, mui excelente e poderoso príncipe, el-rey D. João II de Portugal, CTEN FZ
16 MAIO 99 • REVISTA DA ARMADA