Page 378 - Revista da Armada
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A MARINHA JOANINA (13)




           O epílogo de um reinado
           O epílogo de um reinado








              ara terminar esta série de artigos sobre a Marinha Joanina,  levando à sugestão de que se devia explorar melhor o regime
              parece-me correcto fazer algumas considerações de ordem  de ventos daquele Atlântico Sul. Pode ser que sim e pode ser
         P geral acerca do reinado do “Príncipe Perfeito” e sobre  que não. Os que querem ver o projecto dos descobrimentos co-
         alguns dos aspectos que mais o marcaram. Num número anterior  mo uma empresa programada milimetricamente, à maneira dos
         já foi referido o seu plano de descobrir uma rota que contornasse  empreendimentos da era industrial, gostam de pensar que as-
         a Africa e que permitisse chegar à Índia sem passar pelo Médio  sim aconteceu e afirmam que a pausa de nove anos foi uma
         Oriente e pelos meandros do comércio veneziano, que obtinham  pausa de estudo.
         elevados lucros com as mercadorias orientais. Não restam dúvi-  Parece-nos ilusória esta hipótese!… Ninguém tinha conheci-
         das que esta ideia esteve presente na mente de D. João II desde  mentos suficientes sobre os agentes atmosféricos e sobre a geo-
         muito cedo e a prová-lo                                                              grafia, para pretender
         estão as viagens maríti-                                                             planear com esse rigor
         mas de Diogo Cão e                                                                   fosse o que fosse. Não,
         Bartolomeu Dias com-                                                                 não é possível!… É pro-
         plementadas pela expe-                                                               vável que se tenha to-
         dição terrestre levada a                                                             mado consciência das
         cabo por Pero da Covi-                                                               dificuldades e, segura-
         lhã e Afonso de Paiva                                                                mente, que se foram
         (que saíram de San-                                                                  estudando melhores
         tarém a 7 de Maio de                                                                 formas de ultrapassar
         1487, pouco antes da                                                                 o Atlântico Sul, mas fa-
         partida de Bartolomeu                                                                zer uma pausa de nove
         Dias). No final dos anos                                                             anos só com esse ob-
         oitenta, o rei tem, pois                                                             jectivo?… Depois de já
         uma ideia mais ou                                                                    ter alcançado o Oceano
         menos concreta do que                                                                Índico?… Não me pa-
         quer e do que precisa                                                                rece lógico. Mais uma
         de saber, para preparar                                                              vez encontro a melhor
         a viagem marítima à  D João II examina a construção das naus destinadas à viagem de Vasco da Gama. As naus que já   solução deste enigma
         Índia e estas duas em-  não iria ver partir. (Aguarela de Roque Gameiro).            numa conjuntura com
         presas destinam-se pre-                                                              diversos componentes:
         cisamente a obter as últimas informações. Bartolomeu Dias en-  entrou-se num período político conturbado, marcado por
         controu a passagem marítima para oriente e, tanto quanto se sa-  problemas internos, que não tinham menor importância do
         be, Pero da Covilhã visitou os portos do Malabar, tomou contac-  que o projecto da Índia, e viveram-se relações externas com-
         to com a navegação do Índico e, provavelmente, fez chegar infor-  plexas, onde a possibilidade de que a coroa de Castela viesse
         mações a Lisboa pela mão de José de Lamego e Abraão de Beja,  parar a um príncipe português ganhara uma perspectiva
         que com ele se encontraram no Cairo.                 muito mais realista do que o antigo projecto de D. Afonso V.
           Com todos estes dados, D. João II estaria habilitado a enviar  E, além disso, uma viagem com essa dimensão exigia a
         uma expedição marítima à Índia, sem grandes dificuldades.  preparação de navios suficientemente fortes para que o
         Contudo, como é sabido, não o fez. Essa viagem (de que falare-  aparecimento dos portugueses naquelas paragens longínquas
         mos) só viria a ocorrer no reinado de D. Manuel, nove anos  infundisse respeito às populações locais. Certamente que não
         depois da viagem de Dias.                            se ignorava que a reacção dos que dominavam o comércio ori-
           Porquê esta hesitação? Porquê este interregno tão longo  ental seria agressiva e violenta.
         quando o Sonho parecia ao alcance da mão?…            A verdade é que os anos foram passando, e D. João II viu o
           Não há dúvida que esta é uma das questões mais fascinantes  Sonho escorrer-lhe por entre os dedos como areia seca da praia,
         da história dos descobrimentos portugueses e não será fácil  nas mãos de uma criança. Em 1495, quando os planos da
         encontrar-lhe uma resposta definitiva. Contudo, há algumas  Grande Viagem, talvez, já estivessem avançados, agonizava em
         observações que podem ser feitas, depois de termos analisado  Alvor rodeado de uns quantos (poucos) amigos, detestado por
         alguns dos acontecimentos mais significativos ocorridos nos  uma grande parte da nobreza e sabendo que a coroa iria para
         anos anteriores. Lembremo-nos, por exemplo da viagem de  um representante dos seus mais directos adversários internos.
         Bartolomeu Dias: recordemos como foi difícil vencer a corrente  Consubstanciava-se nesta morte prematura a tragédia do ho-
         e os ventos que encontrou a sul de Angola e como, com uma  mem que não conseguiu fugir à força do destino. Da obra que
         manobra de marinheiro experimentado, resolveu fazer-se ao  inteligentemente elaborara e que com paciência fora desenvol-
         largo e contornar o vento ponteiro que lhe impedia a pro-  vendo, nada conseguira ver realizado. Caberia a outro colher a
         gressão para sul. Foram dificuldades que poderiam ser venci-  seara que semeara com argúcia, sangue, suor e lágrimas.
         das da mesma maneira numa viagem seguinte, mas podem ter
         levantado algumas dúvidas a quem tinha a mente ocupada em                                J. Semedo de Matos
         encontrar as melhores soluções para os objectivos pretendidos,                                   CTEN FZ
                                                                                      REVISTA DA ARMADA • DEZEMBRO 99  15
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