Page 306 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. MANUEL (7)



                          Os Caminhos do Mar
                           Os Caminhos do Mar




               mar é um espaço de fascínio que  Verde até ao Cabo da Boa Esperança, nos
               sempre inspirou poetas e deleitou  tempos da navegação à vela, era feita com
         Oos espíritos contemplativos e nostál-  uma volta larga, à medida das condições de
         gicos de uma liberdade que se reacende na  vento predominante. E o conhecimento
         visão do infindo, por vezes envolvido na  deste "corredor de acesso" não é coisa que se
         bruma de onde se espera que saiam deuses,  veja de forma imediata, porque nunca é pos-
         ninfas, faunos, sereias e outros seres míticos  sível saber onde nos leva um vento desco-
         que compõem um mundo onde nos senti-  nhecido, que pode mudar de um momento
         mos meio na realidade meio no sonho.  para o outro ou pode manter-se constante.
         Desde sempre que os homens olharam o  Assim aconteceu no Atlântico e assim acon-
         oceano como algo de misterioso que atrai  teceu no Índico, mas enquanto o primeiro
         como a vertigem do abismo cósmico e des-  demorou oitenta anos a explorar, com múl-
         perta a recordação da paz primitiva, mater-  tiplas expedições, o segundo foi cruzado
         nal e tentadora. É um espaço que se renova,  com enorme facilidade, conseguindo-se
         onde os dias se sucedem desiguais, na ânsia  costear a África e atravessar para a Índia, na
         de voltar a avistar a terra que acolhe mas  segunda vez que os portugueses entraram
         que, por vezes, queima e impele os homens  nesse Oceano.
         para aquela luta com o tempo, para aquela  Entre o Cabo da Boa Esperança e a Ilha de
         visão do horizonte, do escuro, do grivar das  Moçambique, Vasco da Gama foi andando
         velas, da calma de uma noite de lua, do ven-  como podia e sabia, tomando precauções
         to na face, de tudo o que só os marinheiros  para não dar em terra e aproveitando o
         sabem sentir. Mas a imagem comum do  vento que, normalmente, é favorável. De-  O Dhow: embarcação tradicional da Costa
         mar é a do espaço infindo, onde não há  pois, apesar de todos os revezes e da descon-  Oriental de África, semelhante às que encontrou
                                                                                 Vasco da Gama em 1498.
         caminhos definidos, não há nada que condi-  fiança dos locais, conseguiu informações
         cione os movimentos e obrigue a dar as vol-  importantes que o levaram até Melinde, on-
         tas que o mundo citadino nos impõe. Mas  de o rei o recebeu com a maior cordialidade
         mesmo com os navios bem motorizados e  e lhe ofereceu os serviços de um piloto ex-  "[...] entre os quáes vinha
         com as condições de navegabilidade aper-  perimentado que conduziria a esquadra até  hu mouro Guzerate
         feiçoadas que hoje dispomos, uma boa parte  Calecute. E há aqui um procedimento que se  de naçam chamado Malemo
         do esforço das tripulações, nas modernas  tornou paradigmático nas primeiras viagens
         cidades flutuantes que parecem indestru-  portuguesas até à Índia: depois de passar o  Caná, o qual assy pelo
         tíveis pelas ondas, é dedicado ao estudo das  Cabo, ir à procura de um porto onde tomar  contentamento que teue
         condições de tempo, de forma a evitar a rai-  um piloto que conduzisse os navios ao  da conuersaçam dos nossos,
         va da natureza, contra a qual não é possível  Malabar. Nas primeiras viagens, Melinde foi
         lutar de igual para igual.         ponto de referência, porque o rei local se  como por çomprazer
           Podemos, por isso, imaginar os proble-  tornou amigo dos portugueses, mas poucos  a elrey que buscava
         mas que teriam os navegadores do século  anos depois foi tomada a Ilha de Moçambi-
         XV que sulcavam o oceano em navios com  que e constituído aí um local de apoio para a  piloto pera lhe dar,
         pouco mais de duas dezenas de metros de  travessia. Os roteiros elaborados foram-se  aceptou querer ir cõ elles.
         comprido, dependendo da força do vento  aperfeiçoando em muitos pormenores, mas  Do sabér do qual
         para alcançar o seu destino. Quer dizer –  no que diz respeito a este percurso final, per-
         mesmo sem pensar nas dificuldades cau-  maneceram insípidos e com indicações pre-  Vasco da Gamma depois
         sadas pelo mau tempo – os navios tinham  cárias, levando-me a crer que se continuou a  que praticou com elle
         de seguir caminhos em que lhes servisse o  confiar na ciência náutica árabe que há sécu-  ficou muyto contente [...]
         vento, e a chegada aos seus destinos depen-  los conduzia navios desde a costa oriental
         dia do conhecimento que os pilotos e ca-  africana até ao Extremo Oriente. Ahmad ibn  e amostrãdolhe Vasco
         pitães tivessem do regime desses ventos. É  Majid foi um dos grandes pilotos árabes da-  da Gamma o grande
         como se os caminhos do mar tivessem, de  quele tempo, e chegou a pensar-se que teria  astrobio de pao que
         facto, as mesmas paredes e obstáculos das  sido ele próprio o homem que conduziu
         cidades, mas com a dificuldade acrescida de  Vasco da Gama. Não é provável que assim  leuaua, e outros de metal
         não serem visíveis com um simples olhar.  tenha acontecido, mas foi sem dúvida ele  com que tomaua a altura
         Para serem encontrados e seguidos necessi-  um dos mais notáveis estudiosos e divulga-
         tavam de "olhares" experientes, feitos de in-  dores da técnica de navegação árabe, saben-  do sol, nam se espantou
         tuições e observações de pequenos sinais. A  do-se que escreveu mais de 40 obras náuticas  o mouro disso [...]
         identificação de algas, peixes, aves, a cor da  que serviram de guias a todos os pilotos do
         água, um cheiro a terra, uma humidade fria  Índico e, seguramente, também, aos portu-
         ou um bafo quente, um salto de vento,  gueses que ali passaram a navegar constan-  João de Barros, Primeira Década
         enfim, pequenas coisas que só são visíveis  temente e em todas as direcções.
         por quem está habituado a vê-las.                      J. Semedo de Matos
           Já se explicou como a viagem de Cabo                        CTEN FZ

         16 SETEMBRO/OUTUBRO 2000 • REVISTA DA ARMADA
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