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A MARINHA DE D. MANUEL (7)
Os Caminhos do Mar
Os Caminhos do Mar
mar é um espaço de fascínio que Verde até ao Cabo da Boa Esperança, nos
sempre inspirou poetas e deleitou tempos da navegação à vela, era feita com
Oos espíritos contemplativos e nostál- uma volta larga, à medida das condições de
gicos de uma liberdade que se reacende na vento predominante. E o conhecimento
visão do infindo, por vezes envolvido na deste "corredor de acesso" não é coisa que se
bruma de onde se espera que saiam deuses, veja de forma imediata, porque nunca é pos-
ninfas, faunos, sereias e outros seres míticos sível saber onde nos leva um vento desco-
que compõem um mundo onde nos senti- nhecido, que pode mudar de um momento
mos meio na realidade meio no sonho. para o outro ou pode manter-se constante.
Desde sempre que os homens olharam o Assim aconteceu no Atlântico e assim acon-
oceano como algo de misterioso que atrai teceu no Índico, mas enquanto o primeiro
como a vertigem do abismo cósmico e des- demorou oitenta anos a explorar, com múl-
perta a recordação da paz primitiva, mater- tiplas expedições, o segundo foi cruzado
nal e tentadora. É um espaço que se renova, com enorme facilidade, conseguindo-se
onde os dias se sucedem desiguais, na ânsia costear a África e atravessar para a Índia, na
de voltar a avistar a terra que acolhe mas segunda vez que os portugueses entraram
que, por vezes, queima e impele os homens nesse Oceano.
para aquela luta com o tempo, para aquela Entre o Cabo da Boa Esperança e a Ilha de
visão do horizonte, do escuro, do grivar das Moçambique, Vasco da Gama foi andando
velas, da calma de uma noite de lua, do ven- como podia e sabia, tomando precauções
to na face, de tudo o que só os marinheiros para não dar em terra e aproveitando o
sabem sentir. Mas a imagem comum do vento que, normalmente, é favorável. De- O Dhow: embarcação tradicional da Costa
mar é a do espaço infindo, onde não há pois, apesar de todos os revezes e da descon- Oriental de África, semelhante às que encontrou
Vasco da Gama em 1498.
caminhos definidos, não há nada que condi- fiança dos locais, conseguiu informações
cione os movimentos e obrigue a dar as vol- importantes que o levaram até Melinde, on-
tas que o mundo citadino nos impõe. Mas de o rei o recebeu com a maior cordialidade
mesmo com os navios bem motorizados e e lhe ofereceu os serviços de um piloto ex- "[...] entre os quáes vinha
com as condições de navegabilidade aper- perimentado que conduziria a esquadra até hu mouro Guzerate
feiçoadas que hoje dispomos, uma boa parte Calecute. E há aqui um procedimento que se de naçam chamado Malemo
do esforço das tripulações, nas modernas tornou paradigmático nas primeiras viagens
cidades flutuantes que parecem indestru- portuguesas até à Índia: depois de passar o Caná, o qual assy pelo
tíveis pelas ondas, é dedicado ao estudo das Cabo, ir à procura de um porto onde tomar contentamento que teue
condições de tempo, de forma a evitar a rai- um piloto que conduzisse os navios ao da conuersaçam dos nossos,
va da natureza, contra a qual não é possível Malabar. Nas primeiras viagens, Melinde foi
lutar de igual para igual. ponto de referência, porque o rei local se como por çomprazer
Podemos, por isso, imaginar os proble- tornou amigo dos portugueses, mas poucos a elrey que buscava
mas que teriam os navegadores do século anos depois foi tomada a Ilha de Moçambi-
XV que sulcavam o oceano em navios com que e constituído aí um local de apoio para a piloto pera lhe dar,
pouco mais de duas dezenas de metros de travessia. Os roteiros elaborados foram-se aceptou querer ir cõ elles.
comprido, dependendo da força do vento aperfeiçoando em muitos pormenores, mas Do sabér do qual
para alcançar o seu destino. Quer dizer – no que diz respeito a este percurso final, per-
mesmo sem pensar nas dificuldades cau- maneceram insípidos e com indicações pre- Vasco da Gamma depois
sadas pelo mau tempo – os navios tinham cárias, levando-me a crer que se continuou a que praticou com elle
de seguir caminhos em que lhes servisse o confiar na ciência náutica árabe que há sécu- ficou muyto contente [...]
vento, e a chegada aos seus destinos depen- los conduzia navios desde a costa oriental
dia do conhecimento que os pilotos e ca- africana até ao Extremo Oriente. Ahmad ibn e amostrãdolhe Vasco
pitães tivessem do regime desses ventos. É Majid foi um dos grandes pilotos árabes da- da Gamma o grande
como se os caminhos do mar tivessem, de quele tempo, e chegou a pensar-se que teria astrobio de pao que
facto, as mesmas paredes e obstáculos das sido ele próprio o homem que conduziu
cidades, mas com a dificuldade acrescida de Vasco da Gama. Não é provável que assim leuaua, e outros de metal
não serem visíveis com um simples olhar. tenha acontecido, mas foi sem dúvida ele com que tomaua a altura
Para serem encontrados e seguidos necessi- um dos mais notáveis estudiosos e divulga-
tavam de "olhares" experientes, feitos de in- dores da técnica de navegação árabe, saben- do sol, nam se espantou
tuições e observações de pequenos sinais. A do-se que escreveu mais de 40 obras náuticas o mouro disso [...]
identificação de algas, peixes, aves, a cor da que serviram de guias a todos os pilotos do
água, um cheiro a terra, uma humidade fria Índico e, seguramente, também, aos portu-
ou um bafo quente, um salto de vento, gueses que ali passaram a navegar constan- João de Barros, Primeira Década
enfim, pequenas coisas que só são visíveis temente e em todas as direcções.
por quem está habituado a vê-las. J. Semedo de Matos
Já se explicou como a viagem de Cabo CTEN FZ
16 SETEMBRO/OUTUBRO 2000 • REVISTA DA ARMADA