Page 381 - Revista da Armada
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O Comandante Conceição Silva e Esposa na sua residência. Na escada da sua residência.
Numa ocasião em que, desembarcando no maneira geral, a mulher russa, e não haveria cadetes (sentido humano e didáctico) lem-
que era então cais praticado pelos “caci- de forma alguma falta de motivação para brou-se uma vez de sugerir que os mais viaja-
lheiros” pequenos, ali no espaço designado uma conversa sobre os astros, e não só. dos relatassem facto ou ocorrência curiosa
por Cais das Colunas, com maleta um tanto das suas andanças pelo mundo. Logo surgi-
gasta das andanças pelos diversos NRP’s em Vivendo por diversos anos no bairro dos ram vários tipos de aventuras dos que tinham
que embarcara, e com fardas que levava para oficiais, no Alfeite, onde começara em apertado a mão a políticos de renome, dos
lavagem na casa paterna, foi chamado à dis- pequeno abrigo de sua autoria a observar as que tinham passado por Holliwood e conhe-
tãncia por uma autoridade policial, que, do estrelas, e onde conseguiu, depois, que jun- cido actriz famosa, ou, em África, conversas
alto da sua importância, lhe mandou abrir a tassem à casa onde vivia, um quarto reforça- com caçadores profissionais, enfim, histórias
mala. O Comandante obedeceu com a expli- do no tecto, coberto com domo de obser- bem diversas de quem anda em navios de
cação “Isto são só roupas que levo para vatório, rotativo e aberto para telescópio já guerra e visita todo o mundo.
lavagem em casa” mas à autoridade não pas- de grandes dimensões (construído por ele O Comandante Conceição Silva permane-
saram despercebidos galões de oficial, que o mesmo) foi aí que se desempenhou de tarefa cia calado, como era da sua natureza, e
fizeram ficar também reticente, esboçando internacional centralizada em França, na quando solicitado pelo Almirante, esboçou
desculpas “está bem, está bem, pode fechar, qual granjeou grande prestígio. Daí que pou- gesto de escusa, por não ter nada de impor-
o senhor desculpe, mas sabe, ultimamente cas vezes se aproveitasse da refeição do tante comparado aos demais que já haviam
tem havido p’rái uns roubos...” almoço, na Escola Naval, preferindo percor- desbobinado suas vivências. E foi com ar mo-
Intrinsecamente honesto e frontal, deixou- rer em passeio, a corta-mato, a curta distân- desto e sóbrio que contou “apenas” ter ele
-me um dia meio receoso quando, estando cia que o separava de casa. próprio dançado uma polka com uma
os dois a fazer provas de resistência de pólvo- Sendo Director da Escola o Almirante Sar- astrónoma russa, numa festa do Kremlin.
ras no Laboratório de Explosivos, somos mento Rodrigues, que partilhava da refeição Claro que houve aclamação geral por feito
informados pelo marinheiro para atender um com oficiais e professores, e, para formação tão invulgar, ao qual ele próprio só dava rela-
homenzinho que queria entregar uns de convivência, convidava sempre dois tiva importância pelo insólito da diferença.
“papeis”: era um funcionário que tinha por
missão entregar os boletins de voto para um Quando, no seu jeep, (de serviço), que ele
daqueles actos “cívicos” a que o Regime de próprio conduzia, e que por força da imutável
quando em quando nos chamava; o Coman- “farda” de pano azul, de praça, feito de farda
dante abriu o papel, leu, e rasgou. Sem acin- branca, fazia que fosse de quando em longe,
te. Sem acrimónia. Calmamente disse: não abordado em Cacilhas por marinheiro carente
colaboro em farsas. Mas, a verdade é que o de transporte para o Alfeite. Pelo caminho
Comandante Conceição Silva nunca foi inco- aguentava bem um diálogo sobre Marinha,
modado. Era também contido e esclarecido sobre pessoal, sobre navios, sobre serviço,
para saber que não devia meter-se em actos deixando no interlocutor uma pontinha de
que traíssem as suas convicções mais íntimas. curiosidade sobre quem seria aquele perso-
E aí se situava a sua fronteira política. nagem, que inclusivamente declinava um con-
Uma das vaidades a que, entre amigos e vite franco e amigo de “é, pá, vamos ali beber
por humor (mas lá no âmago do seu ser, um copo”, e de certa vez em que o passageiro
bem saboreada) costumava blasonar (sem ao despedir-se, com bom aperto de mão, lhe
jactância) era o de ter dançado no Kremlin perguntou: “é pá, mas afinal quem é que tu
com uma astrónoma russa. Foi o caso de, és?”, pergunta a que o Comandante, com toda
em congresso internacional sobre Astrono- a naturalidade, respondeu “sou o comandante
mia, a realizar em Moscovo, ter sido indica- Conceição Silva”, ouviu como resposta “boa
do para representar Portugal um Astrónomo piada, boa piada” – entre as boleias aos mari-
nosso, da cor oficial, mas sem qualidades à nheiros e uma polka com a astrónoma russa,
altura do acontecimento; suficientemente não digam que esta não era bom motivo de
lúcido para o reconhecer, teve também a orgulho! Até para um sábio!
honestidade de indicar como pessoa capaz
o Comandante Conceição Silva, que acei- O Comandante Conceição Silva visto por um dos (*) – Hoje Procuradoria Geral da República.
tou o convite. Confissão do comandante, a seus alunos em 1956, cadete Manuel Melo e Cunha S. Machado
astrónoma russa era bem gira, como é, de – CFR REF. CMG ✎
REVISTA DA ARMADA • DEZEMBRO 2000 19