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A MARINHA DE D. MANUEL (9)



                  Vasco da Gama na Índia
                  Vasco da Gama na Índia



                                                    (2ª parte)




               primeira grande                                                             como nos diz Álvaro Ve-
               preocupação de                                                              lho. Os dignitários do Sa-
         AVasco da Gama,                                                                   morim, quando viram o
         após chegar a Calecut, foi                                                        que lhes mandava o rei de
         estabelecer contacto com o                                                        Portugal ficaram indigna-
         soberano local e entabular                                                        dos e Vasco da Gama não
         conversações em nome do                                                           conseguiu disfarçar a sua
         rei de Portugal. É curioso                                                        própria aflição perante tão
         notar até que, apesar de                                                          parca expressão do que
         todas as reticências colo-                                                        queria fazer crer que era
         cadas num desembarque                                                             um poderoso rei no Oci-
         em Melinde e noutros pon-                                                         dente. Os portugueses de-
         tos da África Oriental, o                                                         vem ter pensado que iam
         Capitão-Mor não hesitou                                                           contactar com um qual-
         em ser ele próprio a deslo-                                                       quer dos reinos africanos a
         car-se a terra, mesmo sa-                                                         quem estavam habituados
         bendo o perigo que isso                                                           a impressionar com mani-
         poderia representar para                                                          lhas de latão, lambeis de
         ele próprio e para o futuro                                                       algodão e missangas, mas
         da esquadra. Tanto quanto                                                         estavam na presença de
         nos diz Fernão Lopes de                                                           quem recebia ouro, faian-
         Castanheda, a sua decisão                                                         ças, sedas, pedrarias e to-
         foi inabalável: iria a terra,                                                     dos os demais tipos de
         porque o Samorim de Ca-  O Samorim recebe Vasco da Gama (gravura francesa do séc. XVII).  riquezas, trazidas pelos
         lecut era o mais poderoso                                                         mercadores que ali pas-
         soberano do Malabar e ele queria dar conta  dade económica (e, por vezes, militar) devi-  savam. Se os portugueses queriam a
         ao seu rei do que realmente havia desco-  do à intensidade do comércio. Por outro  amizade deste senhor do Oriente, não
         berto naquela viagem.              lado, no mar dominavam os mercadores de  podiam apresentar-se daquela forma. E a
           O Oceano Índico com os povos que o cir-  origem árabe ou (mais tarde) Guzerate que  verdade é que a embaixada não impressio-
         cundavam constituía um sistema de  se relacionavam com estes reis do Malabar  nou suficientemente os indianos. O sobera-
         comércio de grande actividade. Ouro,  e que procuravam exercer influências de  no achou curioso que aqueles navios
         cobre, marfim e escravos da África Oriental  acordo com os seus interesses mercantis.  viessem de tão longe para estabelecer
         eram trocados por panos do Guzerate, por  O facto de Vasco da Gama se ter dirigido  relações com o seu reino, mas estava cir-
         pimenta do Malabar, por canela de Ceilão,  a Calecut, deve-se ao conhecimento de que  cunspecto perante a situação que se lhe
         cravo das ilhas do Extremo Oriente, sedas e  era esse o mais poderoso dos senhores do  colocava: por um lado tinha as boas e es-
         porcelanas da China, enfim, um fervilhar  comércio da especiaria, mas não é certo que  táveis relações com os mercadores muçul-
         constante de mercadores que, depois,  o soubesse já D. Manuel em Lisboa. É de  manos, e, por outro, a possibilidade de se
         canalizavam os produtos excedentários,  crer que sim, porque as informações sobre  relacionar com este reino distante que que-
         através dos desertos da Arábia até ao  o Oriente já tinham atravessado o Me-  ria comerciar directamente na Índia. Para
         Mediterrâneo, de onde eram distribuídos  diterrâneo na boca dos mercadores italia-  os portugueses estava em causa a possibili-
         pela Europa consumidora. Ora a costa do  nos. Para além disso, é provável que o  dade de se estabelecerem no Malabar e
         Malabar (parte ocidental da Península  reconhecimento efectuado por Pêro da  chegarem ao comércio rico do Oriente, mas
         Indostânica desde o Cabo Comorim a  Covilhã, ainda no reinado de D. João II,  parecia que não estava tudo a correr bem.
         Cananor) desempenhava um papel funda-  tenha trazido notícias do sistema comercial  O Samorim aceitara receber Vasco da
         mental na ligação entre o tráfego do  do Índico, e, sobretudo, não é crível que se  Gama de uma forma sumptuosa, mas
         Extremo Oriente e a parte ocidental do  tenha efectuado uma viagem daquelas,  claramente desprezara a sua missão quan-
         Índico, uma vez que permitia o resguardo  sem saber nada sobre o que se ia à procura.  do se apercebeu que não trazia as riquezas
         dos navios entre as monções favoráveis  Deve notar-se, contudo, que não havia uma  a que estava habituado. A primeira tentati-
         para a navegação de um lado ou de outro.  noção correcta da dimensão e riqueza dos  va de estabelecer um poder efectivo na
         Mas, para além disso, a situação política  reinos orientais, e uma prova disso está no  Índia estava gorada e certamente que essa
         dessa região, encravada entre a cordilheira  embaraço sentido pelo Gama quando foi  foi uma das notícias dadas a D. Manuel no
         dos Gates e o mar, tinha-lhe conferido uma  confrontado com a pobreza dos presentes  regresso: tinha-se chegado à Índia, mas não
         certa independência em relação aos  que levava. "doze lambeis e quatro capuzes  se poderia comerciar como se fazia noutras
         grandes potentados do Indostão, de forma  de grã e seis chapéus e quatro ramais de  partes.
         que o poder era exercido por soberanos  coral e um fardo de bacias em que havia
         locais, mais ou menos independentes e –  seis peças, e uma caixa de açúcar e quatro       J. Semedo de Matos
         como seria de esperar – de grande capaci-  barris cheios, dois de azeite e dois de mel",         CTEN FZ

         22 DEZEMBRO 2000 • REVISTA DA ARMADA
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