Page 8 - Revista da Armada
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A Escola Naval visita Madrid
A Escola Naval visita Madrid
inda hoje aquele que entra em regasse o próprio mundo. Nenhum soberano S. Lourenço do Escorial (incontornável visita
Madrid, vindo de Levante ou de da Idade Moderna sentiu e sofreu como Filipe para quem está ali por perto) e, naturalmente,
“A Sul, se espanta de que, quando já II a angústia irremediável do excessivo poder, para percorrer os seiscentos quilómetros de
está perto da cidade, não possa apreciar mais visto sempre como um legado de Deus, razão regresso a casa. Ficou-nos um sabor a pouco,
do que a pura estepe da meseta”, diz-nos o his- de culpa e temor. No fim de contas a angústia mas esse pouco foi muito bom.
toriador espanhol Manuel Fernandez Alvarez. da imortalidade e da salvação, pendente do O Museu do Prado é uma ver-
E cita-nos outros relatos que cor- dadeira pérola artística a ver e
roboram a sua opinião dando-nos admirar com toda a atenção,
a ideia de que, de facto, a capital desde o próprio edifício até ao
da imensa Espanha não nasceu ali último quadro ou escultura.
de uma forma natural, como Bosch, Bruegel, Dürer, Boticelli,
aconteceu com muitas outras ca- Rafael, Ticiano, El Greco,
pitais do mundo. Dá-nos o exem- Rembrandt, Rubens, Velazquez,
plo de Roma, Paris, Atenas, Goya e tantos outros que com
Londres ou Lisboa que foram cres- grande injustiça estou a omitir. O
cendo com um carácter próprio, Museu contém hoje o que de
no contexto das nações em que se mais importante foi sendo
inseriam, acabando por assumir o reunido pela monarquia espa-
estatuto de capitais, de uma forma nhola, ao longo dos tempos. O
tão natural, como pode ser natural próprio edifício é
esta obra humana da marcha dos um magnífico
séculos a caminho do mundo Grupo da Escola Naval junto ao Museu do Prado. exemplar de ar-
moderno. Madrid não cresceu quitectura neo-
assim. Madrid foi obra de um rei que ali quis que pensou ser também a -clássica da au-
colocar a sede do seu poder absoluto, montan- salvação da cristandade, toria de Juan de
do todas as estruturas estatais de forma a go- pela qual se sentia o res- Villanueva, edifi-
vernar um imenso império que se estendeu por ponsável máximo. cado no final do
todas as longitudes. Trata-se de Filipe II de E foi a Madrid que, no governo de Carlos
Espanha, aquele que foi primeiro de Portugal a passado dia 5 de Outubro, III, delimitando o
partir de 1581, e que teve sob a alçada da sua um grupo de alunos, pro- “Paseo del Prado”
coroa o maior “império” de sempre, juntando fessores e funcionários da Escola Naval efec- e contíguo ao jardim do “Buen Retiro”.
as possessões ultramarinas portugueses e tuaram uma visita cultural que se integra no No piso de entrada, encontramos pintura
espanholas no período áureo da expansão programa anual de actividades circum-esco- espanhola, flamenga, alemã e italiana até ao
além mar. Foi este homem que em 1562 (antes lares. A cidade (em si) tem hoje quase três mi- século XVI. O auge do renascimento, com
de tomar conta da coroa de Portugal) resolveu lhões de habitantes e a comunidade (ou a quadros de Rafael, Boticelli, Dürer, e outros. As
levar a sua corte para Madrid e governar, a par- “grande Madrid”, como chamaríamos nós) figuras esquálidas e longilíneas, carregadas de
tir daí, tudo o que herdara de seu pai. Bons ultrapassa os cinco milhões, de forma que azuis misteriosos e, por vezes, aterradores de el
ares? boas águas? facilidade de acessos?... uma visita de dois dias nunca permitiria, Greco – um pintor que não é fácil de entender,
Todas estas razões foram invocadas na altura e sequer, entrever o imenso legado cultural de de que não se gosta à primeira vista como
continuam a ser vistas como razões de peso na uma cidade com esta dimensão. Limitámo-nos sucedeu com o próprio Filipe II, mas que trans-
decisão. Todavia há algo da personalidade real a escolher dois centros artísticos de inques- mite muito do temor da precaridade da vida,
que se associa às circunstâncias políticas do tionável valor, onde seria possível apreciar um da perturbação que anuncia o barroco, que é o
momento e que certamente pesaram na conjunto numeroso de obras de arte, com um sofrimento do homem seiscentista perdido
decisão régia: ao contrário de seu pai – Carlos nível que dificilmente está ao nosso alcance. entre o céu e a terra. Os surpreendentes Bosch
V –, Filipe não pretende passar a vida a cavalo, Tivemos uma manhã para ver o Museu do e Bruegel, que nos dão um prenúncio do sur-
caminhando de guerra em guerra, como os Prado e uma tarde para o Museo Nacional realismo que só chegará quatro séculos depois.
soberanos medievais; o novo rei tem uma Centro de Arte Reina Sofia. O dia seguinte (dia E Ticiano, naturalmente: o artista que transpõe
extensíssima corte de funcionários com quem 6 de Outubro) foi dedicado ao Mosteiro de para a tela a imagem do poder crescente da
despacha no seu gabinete, e Casa de Áustria; o grande pin-
pretende colocar-se no local tor de Carlos V, que Filipe II,
certo para receber notícias e talvez, não tenha apreciado
enviar ordens. São as men- tanto, mas que protegeu como
sagens expedidas e recebidas seu pai já o fizera. É a Ticiano,
em número sem fim que têm também, que devemos um
de viajar céleres por todo o magnífico retrato de Isabel de
mundo. Para ele fica a solidão Portugal, a filha do nosso rei
do gabinete onde trabalha D. Manuel, casada com o
desde o nascer do sol até alta imperador e mãe de Filipe II.
noite, vasculhando papéis, No segundo piso estão
recebendo embaixadores, des- (entre outros) os Nicolas
pedindo mensageiros e, sobre- Poussin, Rubens, Van Dick,
tudo, tomando decisões: Rembrandt, Velazquez e
decisões que lhe vergavam os Goya. Estes dois últimos mere-
ombros como se neles car- Mosteiro de S. Lourenço do Escorial. cem-nos uma especial atenção
6 JANEIRO 2003 • REVISTA DA ARMADA