Page 9 - Revista da Armada
P. 9

e começamos por falar de Velazquez, não só  como uma continuidade do cubismo onde  ciso ler um volumoso livro para entender um
         porque a abundância dos seus quadros faz dele  cimentara a sua pintura no princípio do sécu-  quadro, mas é igualmente absurdo que a
         o núcleo essencial do Prado, mas também  lo, e isso é muito claro na maior parte da sua  expressão artística elaborada – aquela que
         porque a sua pintura mostra laivos                                             seguiu um caminho de Rafael ou
         de transição para períodos pos-                                                Boticcelli até Picasso ou Miró –
         teriores revelados, sobretudo, nas                                             possa ser consumida com a
         obras onde não está condicionado                                               velocidade de uma telenovela ou
         pela encomenda real. Nessa                                                     de show televisivo. A visita a este
         altura, o pincel de Velazquez                                                  museu mostrou-o muito bem.
         mexe-se com uma verdadeira                                                       São Lourenço do
         liberdade de artista que sai para                                              Escorial não pode descrever-se
         fora do retrato do renascimento e                                              aqui em mais do que traços gros-
         que Manet reconheceu como                                                      seiros, que nunca conseguirão
         uma sugestão  do impressionismo                                                transmitir a grandiosidade e a
         (avant la lettre). Velazquez é, aliás,                                         riqueza artística que nele está
         um verdadeiro homem do barro-                                                  contida. Concebido como palá-
         co, em cujos trabalhos se espelha                                              cio/convento é o resultado de um
         a crise social, política e económi-                                            entendimento particular entre
         ca da Espanha da primeira metade                                               Juan de Herrera – o arquitecto
         do século XVII. A mesma crise de                                               mais determinante da construção
         costumes da novela O Lanzarilho                                                – e Filipe II. O monarca fê-lo para
         de Tormes, também descrita                                                     dar uma imagem pública do que
         por Cervantes, Lope de Vega,  Rendição de Breda ou Las Lanças, Velazquez – Museu do Prado.  significava a monarquia espanho-
         Quevedo e outros, é a mola real                                                la no Mundo, mas fê-lo também
         que o distrai do naturalismo das formas e o  obra. O mais célebre quadro de Picasso que  para conforto moral da sua própria consciên-
         aproxima do tal impressionismo reconhecido  tivemos ocasião de apreciar em Madrid foi a  cia desamparada depois da morte de Carlos V.
         por Manet, quando visitou o Prado no século  Guernica e, também, ele é um excelente  Ao receber a notícia da vitória na Batalha de
         XIX. E fecharemos o Prado com Goya, passan-  exemplo da “desconexão” surrealista: do  S. Quentin, contra os franceses (1562), decide
         do por cima de toda a colecção de escultura  pesadelo onde as figuras se misturam no con-  lançar a primeira pedra para a construção do
         que já não cabe neste artigo, mas que não é, de  texto global do horror. É mais fácil apreciar  monumento, onde tencionava viver (e por isso
         todo, para desprezar. Goya foi também um  Dali do que Picasso ou Miro, talvez porque há  lhe agregou um palácio real), onde se recolhe-
         pintor ligado à corte – neste caso de Carlos IV –  nele um conservadorismo que nos trás ima-  riam cerca de 100 frades Jerónimos, onde fun-
         mas com um percurso biográfico complexo,  gens mais simples de entender na dificuldade  cionaria uma imensa biblioteca (com cerca de
         num momento em que a Espanha viveu as  de sonho com que, por vezes, nos deslocamos  40 000 volumes impressos, 2000 manuscritos
         lutas liberais e sofreu as invasões napoleónicas.  pelos corredores de um museu. Miró é, sem  árabes, 580 gregos, 72 hebreus, 2000 latinos e
         É claro que muitos dos seus temas não podem  dúvida, o mais difícil de todos, mas é aquele  muitos outros de outras línguas), um colégio e
         deixar de ser retratos da família real onde se  que mais longe foi no surrealismo: a verda-  um seminário maior e, como não podia deixar
         reconhecem temas semelhantes a Velazquez.  deira viagem onírica que pode repetir-se em  de ser, a basílica central, para onde tinham li-
         Mas Goya solta-se deste espartilho artístico e  cada observador em busca do mais íntimo dos  gação directa os aposentos do rei. Foi construí-
         consegue chegar a pontos que, mais uma vez,  seu próprio íntimo. Para entender os surrealis-  do em granito trazido da serra de Guadarrama,
         passam por rasgos de impressionismo, seguin-  tas é, naturalmente, necessário, uma pre-  a parte do convento ficou concluída em 1571,
         do o caminho percorrido mais tarde por Van  paração prévia que obriga ao entendimento  o palácio real começou em 1572 e a Basílica
         Gogh, à procura das verdadeiras emoções  do que pretende este movimento angustiado  em 1575. A partir de 1579 começa a cons-
         humanas, a caminho do expressionismo.  pela bestialidade humana. Mas é normal que  trução da Biblioteca, do Colégio e Seminário,
         Quadros como Los fuzilamientos en la mon-  assim seja. O surrealismo não é um movimen-  e a última pedra foi colocada em 1584.
         taña del Príncipe Pio são bem o exemplo disso.  to imediatista que possa expressar-se em fla-  Seguiu-se o processo de decoração e arranjos
           O Museu Nacional Centro de       shes de televisão que prendam a atenção de  interiores, até que em 1595 foi, finalmente,
         Arte Reina Sofia exibe uma colecção de  toda a gente. É absurdo pensar que seja pre-  consagrada a basílica. O rei só viveria mais
         obras da época contemporânea, cobrindo o                              três anos e já não quis construir as criptas
         século XIX e XX. Visitámos todo o museu, mas                          funerárias, alegando que seriam obra para os
         centrámos a nossa atenção em três autores de                          seus descendentes. O principal motivo do iní-
         grande fama, que ali estão muito bem repre-                           cio da obra – fazer um panteão para a nova
         sentados. São eles Picasso, Dali e Miro, todos                        monarquia começada com Carlos V – ficava
         espanhóis emigrados em França que, de uma                             adiada até ao reinado de Filipe IV. Aliás, como
         maneira ou de outra, contactaram com o                                é compreensível, outras obras vieram a ser le-
         movimento surrealista e que por ele foram                             vadas a cabo por monarcas posteriores,
         fortemente influenciados. O surrealismo nasce                         nomeadamente para que crescesse à volta do
         entre as duas guerras como um protesto deses-                         imenso palácio/mosteiro, a povoação que
         perado contra a violência trágica a que a                             hoje ali podemos encontrar.
         humanidade não renuncia, e que gera nos                                 A visita da Escola Naval a Madrid termi-
         povos uma angústia surda, mas que leva os                             nou pois com uma chave de ouro que ape-
         intelectuais até ao desespero acompanhado                             nas pecou por ter sido (mais uma vez)
         sempre por uma expressão artística forte.                             demasiado curta. O Escorial precisa de mais
         Surrealismo é algo que está acima do real                             de uma manhã para ser visto, mas os
         assumindo-se como um espaço de sonho                                  quilómetros não perdoam e era preciso
         onde tudo o que é humano é permitido. E                               embarcar em direcção a casa.
         deve apresentar-se com a mesma desordem e
         aparente desconexão com que se apresenta                                                J. Semedo de Matos
         no próprio sonho. Picasso viveu o surrealismo  Miró – Centro de Arte Reina Sofia.                  CFR FZ
                                                                                       REVISTA DA ARMADA • JANEIRO 2003 7
   4   5   6   7   8   9   10   11   12   13   14