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e começamos por falar de Velazquez, não só como uma continuidade do cubismo onde ciso ler um volumoso livro para entender um
porque a abundância dos seus quadros faz dele cimentara a sua pintura no princípio do sécu- quadro, mas é igualmente absurdo que a
o núcleo essencial do Prado, mas também lo, e isso é muito claro na maior parte da sua expressão artística elaborada – aquela que
porque a sua pintura mostra laivos seguiu um caminho de Rafael ou
de transição para períodos pos- Boticcelli até Picasso ou Miró –
teriores revelados, sobretudo, nas possa ser consumida com a
obras onde não está condicionado velocidade de uma telenovela ou
pela encomenda real. Nessa de show televisivo. A visita a este
altura, o pincel de Velazquez museu mostrou-o muito bem.
mexe-se com uma verdadeira São Lourenço do
liberdade de artista que sai para Escorial não pode descrever-se
fora do retrato do renascimento e aqui em mais do que traços gros-
que Manet reconheceu como seiros, que nunca conseguirão
uma sugestão do impressionismo transmitir a grandiosidade e a
(avant la lettre). Velazquez é, aliás, riqueza artística que nele está
um verdadeiro homem do barro- contida. Concebido como palá-
co, em cujos trabalhos se espelha cio/convento é o resultado de um
a crise social, política e económi- entendimento particular entre
ca da Espanha da primeira metade Juan de Herrera – o arquitecto
do século XVII. A mesma crise de mais determinante da construção
costumes da novela O Lanzarilho – e Filipe II. O monarca fê-lo para
de Tormes, também descrita dar uma imagem pública do que
por Cervantes, Lope de Vega, Rendição de Breda ou Las Lanças, Velazquez – Museu do Prado. significava a monarquia espanho-
Quevedo e outros, é a mola real la no Mundo, mas fê-lo também
que o distrai do naturalismo das formas e o obra. O mais célebre quadro de Picasso que para conforto moral da sua própria consciên-
aproxima do tal impressionismo reconhecido tivemos ocasião de apreciar em Madrid foi a cia desamparada depois da morte de Carlos V.
por Manet, quando visitou o Prado no século Guernica e, também, ele é um excelente Ao receber a notícia da vitória na Batalha de
XIX. E fecharemos o Prado com Goya, passan- exemplo da “desconexão” surrealista: do S. Quentin, contra os franceses (1562), decide
do por cima de toda a colecção de escultura pesadelo onde as figuras se misturam no con- lançar a primeira pedra para a construção do
que já não cabe neste artigo, mas que não é, de texto global do horror. É mais fácil apreciar monumento, onde tencionava viver (e por isso
todo, para desprezar. Goya foi também um Dali do que Picasso ou Miro, talvez porque há lhe agregou um palácio real), onde se recolhe-
pintor ligado à corte – neste caso de Carlos IV – nele um conservadorismo que nos trás ima- riam cerca de 100 frades Jerónimos, onde fun-
mas com um percurso biográfico complexo, gens mais simples de entender na dificuldade cionaria uma imensa biblioteca (com cerca de
num momento em que a Espanha viveu as de sonho com que, por vezes, nos deslocamos 40 000 volumes impressos, 2000 manuscritos
lutas liberais e sofreu as invasões napoleónicas. pelos corredores de um museu. Miró é, sem árabes, 580 gregos, 72 hebreus, 2000 latinos e
É claro que muitos dos seus temas não podem dúvida, o mais difícil de todos, mas é aquele muitos outros de outras línguas), um colégio e
deixar de ser retratos da família real onde se que mais longe foi no surrealismo: a verda- um seminário maior e, como não podia deixar
reconhecem temas semelhantes a Velazquez. deira viagem onírica que pode repetir-se em de ser, a basílica central, para onde tinham li-
Mas Goya solta-se deste espartilho artístico e cada observador em busca do mais íntimo dos gação directa os aposentos do rei. Foi construí-
consegue chegar a pontos que, mais uma vez, seu próprio íntimo. Para entender os surrealis- do em granito trazido da serra de Guadarrama,
passam por rasgos de impressionismo, seguin- tas é, naturalmente, necessário, uma pre- a parte do convento ficou concluída em 1571,
do o caminho percorrido mais tarde por Van paração prévia que obriga ao entendimento o palácio real começou em 1572 e a Basílica
Gogh, à procura das verdadeiras emoções do que pretende este movimento angustiado em 1575. A partir de 1579 começa a cons-
humanas, a caminho do expressionismo. pela bestialidade humana. Mas é normal que trução da Biblioteca, do Colégio e Seminário,
Quadros como Los fuzilamientos en la mon- assim seja. O surrealismo não é um movimen- e a última pedra foi colocada em 1584.
taña del Príncipe Pio são bem o exemplo disso. to imediatista que possa expressar-se em fla- Seguiu-se o processo de decoração e arranjos
O Museu Nacional Centro de shes de televisão que prendam a atenção de interiores, até que em 1595 foi, finalmente,
Arte Reina Sofia exibe uma colecção de toda a gente. É absurdo pensar que seja pre- consagrada a basílica. O rei só viveria mais
obras da época contemporânea, cobrindo o três anos e já não quis construir as criptas
século XIX e XX. Visitámos todo o museu, mas funerárias, alegando que seriam obra para os
centrámos a nossa atenção em três autores de seus descendentes. O principal motivo do iní-
grande fama, que ali estão muito bem repre- cio da obra – fazer um panteão para a nova
sentados. São eles Picasso, Dali e Miro, todos monarquia começada com Carlos V – ficava
espanhóis emigrados em França que, de uma adiada até ao reinado de Filipe IV. Aliás, como
maneira ou de outra, contactaram com o é compreensível, outras obras vieram a ser le-
movimento surrealista e que por ele foram vadas a cabo por monarcas posteriores,
fortemente influenciados. O surrealismo nasce nomeadamente para que crescesse à volta do
entre as duas guerras como um protesto deses- imenso palácio/mosteiro, a povoação que
perado contra a violência trágica a que a hoje ali podemos encontrar.
humanidade não renuncia, e que gera nos A visita da Escola Naval a Madrid termi-
povos uma angústia surda, mas que leva os nou pois com uma chave de ouro que ape-
intelectuais até ao desespero acompanhado nas pecou por ter sido (mais uma vez)
sempre por uma expressão artística forte. demasiado curta. O Escorial precisa de mais
Surrealismo é algo que está acima do real de uma manhã para ser visto, mas os
assumindo-se como um espaço de sonho quilómetros não perdoam e era preciso
onde tudo o que é humano é permitido. E embarcar em direcção a casa.
deve apresentar-se com a mesma desordem e
aparente desconexão com que se apresenta J. Semedo de Matos
no próprio sonho. Picasso viveu o surrealismo Miró – Centro de Arte Reina Sofia. CFR FZ
REVISTA DA ARMADA • JANEIRO 2003 7